As novas tecnologias geraram novas oportunidades e condições de trabalho, mas a precarização acelerada pela pandemia excluem os profissionais brasileiros de um senso de identidade coletiva que favoreceram outras formas de organização, como as igrejas neopentecostais e o crime organizado. “Nesses ‘novos campos de luta’, os trabalhadores não sabem a que pertencem”, explica o pesquisador e economista Márcio Pochmann.
Pochmann foi o convidado da 28ª live da Revolução Brasileira no Século 21, que nesta quinta-feira (2) debateu o “Trabalho na Era Digital”.
Ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Pochmann é pesquisador e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente também da Fundação Perseu Abramo, de 2012 a 2020, além de secretário municipal de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade de São Paulo, de 2001 a 2004.
“Esses trabalhadores vivem de suprir os seus débitos e, mensalmente, buscam o crédito para suprir as suas despesas. Dessa forma, não possuem mais uma categoria de trabalho, por exemplo, como os metalúrgicos, culminando na busca por alguma identidade em outras espaços”
Márcio Pochmann
A série de lives integra as discussões sobre a Autorreforma do PSB e é promovida pelo Instituto Pensar, o site Socialismo Criativo e o Partido Socialista Brasileiro (PSB). O evento contou com a presença do membro do Diretório Nacional do PSB, Domingos Leonelli; e do vice-presidente da Fundação João Mangabeira (FJM), Alexandre Navarro. A mediação será feita por James Lewis.
Alexandre Navarro destacou a importância da discussão sobre o tema, uma vez que o universo do trabalho sofre rápidas transformações com a influência das novas tecnologias.
“Sustentabilidade que envolve pessoas é um tema importante, mas emprego, nesse contexto é um desafio. Por isso, a importância da realização desse debate com um convidado tão qualificado”, disse.
Navarro lembrou a discussão histórica sobre a inclusão de trabalhadores diante das transformações tecnológicas.
“O Brasil tem um número crescente de desempregados e desalentados, que não possuem qualificação, por exemplo, que não sabemos como inserir no mercado de trabalho”, afirmou.
“Em vez de um debate sobre reindustrialização, defendemos o renascimento criativo da indústria, que compreenda os desafios contemporâneos”, explicou.
James Lewis ressaltou que o debate integra uma série de debates realizada pelo partido para discutir a atualidade brasileira.
Papel do trabalho é central
Marcio Pochmann afirma que a questão do trabalho permanece central para a comunidade científica, embora debatido há séculos por diferentes teóricos da sociedade e da economia.
“O que esta havendo é o deslocamento do trabalho em relação ao emprego. Também devemos observar um outro tema, o deslocamento do centro do mundo do Ocidente para o Oriente, que emerge com China, o que traz imensas perspectivas de futuro. Só podemos seguir em frente”, disse.
Entre os problemas apontados pelo pesquisador que distanciam o Brasil destes protagonistas está a falta de um projeto nacional que saiba aproveitar ou criar oportunidades.
“Tivemos o leilão do 5G no Brasil realizado como algo comum, como se fosse a um supermercado comprar algo. Quer dizer, não existe uma estratégia nacional para o aproveitamento de tecnologias com esse potencial”, criticou.
Da mesma maneira, o Brasil não aparece como produtor de tecnologias digitais que impactem a vida dos usuários.
“Não estamos produzindo tecnologia digital, embora tenhamos a segunda maior população mundial que mais gasta tempo na internet”, apontou.
E incluiu, entre os exemplos da falta de planejamento governamental, baixos investimentos em Educação. “Se tivéssemos Ciência e Tecnologia articulados poderíamos experimentar um cenário melhor”.
Como consequência, diz Pochmann, o Brasil permanece sendo um país de consumo, como em outros períodos importantes do desenvolvimento, como a exportação cafeeira e atual contexto do agronegócio. “Nesse cenário, temos um problema entre o trabalho de produção e de reprodução”, ressaltou.
“Foi a internet que permitiu o trabalho em casa. Então, estamos misturando os trabalhos de produção e reprodução. Acredito que é aí que se abre um novo campo de luta. Estamos diante de um momento muito interessante de um mundo a ganhar, mas não estamos estamos colhendo os melhores resultados porque não temos um projeto nacional para o desenvolvimento dessas ações. O cenário pede ideias novas e projetos novos”, defendeu Pochmann.
Debate
Presidente do Instituto Pensar, Domingo Leonelli destacou que o Brasil “está entrando na porta do conhecimento pelo consumo, não pela produção”, convergindo no debate com o pesquisador.
“Estamos cada dia mais atrasados porque não percebemos ou incorporamos as mudanças no modo de produção capitalista, que gerou essas novas formas de luta. A tendência do mundo é mudar o processo do trabalho e emprego”
Domingos Leonelli
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Pochmann abordou a trajetória histórica dos trabalhadores, que teriam como resultado das próprias transformações capitalistas a sua organização, com sindicatos e outras formas de representação.
“Partidos políticos são resultado de uma sociedade tecnológica, urbana, centrada no trabalho, a partir de projetos de transformação para tornar a massa do campo em proletários nas cidades. Dessa forma, teriam uma cidadania, ou seja, o emprego assalariado seria uma identidade e pertencimento na sociedade”.
Com as novas tecnologias, o pesquisador indicou que pode estar ocorrendo a redução da importância do capital e do trabalho para uma relação entre debito e crédito.
“Se fizermos uma pesquisa com trabalhadores do aplicativo, podemos perceber que eles iniciam um mês sabendo do ‘debito’, quer dizer, o custo para sobreviver. E ele segue o mês para suprir e cobrir esse crédito. Ele faz de tudo para isso”, explicou.
No contexto dos chamados trabalhos gerais, agora temos incluídos, por exemplo, o motorista ou entregador de aplicativos. “Nesse sentido, se aceita qualquer coisa que pague o débito, mas ele está atrás de uma identidade. Afinal, ele não é trabalhador assalariado, com vínculos trabalhistas e outros laços”, analisa Pochmann.
“Talvez isso justifique o crescimento das igrejas e do crime organizado. Porque oferecem a oportunidade de representação mais ampla”, disse o pesquisador. “Uma busca por sociabilidade, por identidade”, ressaltou.
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Sem projeto não há desenvolvimento, afirma Pochmann
Sem um projeto nacional, não se pode esperar desenvolvimento. “É fundamental saber para onde nós vamos. Precisamos pensar num estado vocacional para produzir nesse sentido [das tecnologias digitais]. Nossa fronteira marítima é uma fonte de riqueza imensurável, mas o que temos a dizer sobre isso? Infelizmente, estamos diante de uma elite sem noção, sem projeto”.
Nesse contexto, também seria necessário revolucionar a universidade brasileira. “É preciso misturar as especializações na universidade. A recuperação do papel da universidade é envolve reorganizá-la para esse desafio do conhecimento e da tecnologia, ou vamos ficar de fora”, finalizou.
“Estamos diante de um horizonte de muitas potencialidades, mas precisamos ter um pensamento engajado nessas possibilidades. O diagnóstico pode nos ajudar a dizer para onde vamos. Precisamos ter clareza com ideias”, disse.
Confira a live na íntegra