Não dá pra dizer que causou estranheza o envio de embargos de declaração da Advocacia-Geral da União (AGU) ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo esclarecimentos sobre alguns pontos da decisão da Corte de igualar o crime de homofobia ao de racismo. Digo que não houve estranhamento porque nada mais me surpreende nesse governo. Muito menos o que vem dos ocupantes de cargos estratégicos que podem atuar no judiciário para excluir o direito de minorias.
Não custa lembrar que o advogado-geral da União, José Levi Mello do Amaral Júnior, também é cotado para assumir uma das vagas no STF que ficarão disponíveis até o fim do governo Bolsonaro. Junto a ele, temos o ministro da Justiça, André Mendonça, e o procurador-geral da República, Augusto Aras. Todos na corrida por uma vaga na Corte Constitucional Brasileira. E para isso, fazem toda qualidade de bizarrice jurídica para agradar o chefe.
O que são embargos de declaração?
Bom, voltando à consulta da AGU. Vale explicar ao leitor que “embargos de declaração” são um instrumento utilizado no mundo jurídico para esclarecer pontos obscuros em um julgamento. Questionar trechos da decisão que, muitas vezes, não ficaram claros ou que podem causar confusão. Na prática, não alteram o resultado do julgamento.
Assim, usando esse instrumento, a AGU quer saber se a decisão do Supremo atinge alguns aspectos da liberdade religiosa, como os atos de exclusão de pessoas do grupo LGBTI+ de organizações religiosas. Para Levi, a decisão do Supremo, em especial o voto do então decano Celso de Mello, teria aberto uma discussão sobre restrições à liberdade religiosa e à de expressão.
Decisão do Supremo e o direito de existir
Mas, afinal de contas o que disse o decano, hoje aposentado:
“Fica assegurada, nesse sentido, a liberdade para que líderes religiosos possam argumentar em seus cultos que condutas homoafetivas não estão de acordo com suas crenças, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas as exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão da sua orientação sexual ou da sua identidade de gênero”, disse o então decano.
Não sei se o leitor concorda comigo, mas está claro que o ex-ministro decidiu que o espaço para a liberdade religiosa só encontra limite no ódio e na discriminação. Ou seja, os líderes religiosos (homofóbicos) podem afirmar que sua fé não aceita a conduta homoafetiva, mas não podem incitar a discriminação contra a comunidade LGBTQIA+.
No entanto, o advogado-geral da União discorda:
“A proteção dos cidadãos identificados com o grupo LGBTI+ não pode criminalizar a divulgação – seja em meios acadêmicos, midiáticos ou profissionais – de toda e qualquer ponderação acerca dos modos de exercício da sexualidade.”
Em outras palavras: ele avalia que a decisão do STF impede as pessoas conservadoras de discriminar os LGBTQIA+. E está certíssimo. É isso mesmo. Não pode. Só que ele defende o direito de discriminar.
Discriminar é um direito religioso?
Nitidamente, o representante da AGU tem a intenção de ampliar as exceções à discriminação. Ele quer diminuir o alcance do julgamento e excluir os líderes religiosos (homofóbicos) de qualquer responsabilização penal.
Não vou reforçar a realidade de violência à qual a população LGBTQIA+ está submetida diariamente. Muito menos tentar argumentar com números o resultado de uma agenda pública em favor do extermínio de minorias. A AGU sabe disso, Bolsonaro também. Eles apenas não se interessam por essas vidas.
A função da AGU é defender os interesses do Estado brasileiro, mas Levi age em favor da agenda bolsonarista, de olho numa vaga no STF.
A esperança agora é que haja a distribuição dos embargos antes que o novo indicado pelo Bolsonaro tome posse. O presidente ameaçou indicar um “ministro terrivelmente evangélico” para assumir a cadeira de Celso de Mello. Caso isso ocorra, esse novo ministro pode ser o responsável por responder ao recurso da AGU.
Percebam, leitores, que até o momento da consulta foi estratégica. A AGU esperou o anúncio da aposentadoria do decano para apresentar um questionamento a seu voto.
Isso tudo na esperança que o seu substituto, indicado pelo presidente, pudesse alargar a interpretação anterior, garantindo mais espaço para a homofobia de líderes religiosos.
A nós, pessoas LGBTQIA+, só nos cabe resistir e lutar pela garantia de nossos direitos.