O número de trabalhadores resgatados em condições análogas à escravidão em 2021 foi o maior desde 2014. Foram quase 2 mil encontradas nessas condições, de acordo com a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho. O número também é 106% a mais que 2020.
A impunidade tem grande peso. Para se ter uma ideia, apesar da pena de quem submete alguém à escravidão variar de dois a oito anos de prisão e multa, apenas 4,2% dos denunciados foram condenados em última instancia entre 2008 e 2019.
Os números fazem parte de um estudo da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (CTETP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Dos 2.679 denunciados por trabalho escravo no período, apenas 112 foram tiveram sentenças transitada em julgado.
“A cada 100 réus acusados de trabalho escravo, cerca de quatro são condenados definitivamente. É mais que impunidade, chega a ser perda de tempo você movimentar a Justiça para condenar quatro pessoas”, diz o coordenador da pesquisa, o juiz federal Carlos Haddad, professor da UFMG, ao DW.
Além do processo, o empregador é incluído por dois anos no Cadastro de Empregadores, a Lista Suja. O que tem se mostrado ineficiente para combater a escravidão moderna.
Dos 1.937 trabalhadores resgatados em 2021, 89% (1.727) estavam no trabalho rural, e 11% no urbano.
As cinco atividades econômicas com maior registro de trabalho escravo, todas são ligadas à produção agrícola e agropecuária, segundo dados do MPT.
Letra morta
Em 2014, foi aprovada uma emenda à Constituição que prevê a expropriação da propriedade onde houver comprovação de trabalho escravo.
Em imóveis rurais, a destinação seria a reforma agrária. Nos urbanos, programas de habitação popular. A emenda prevê ainda a inclusão prioritária dos trabalhadores resgatados nos assentamentos e programas habitacionais.
Porém, a falta de regulamentação pelo Congresso Nacional, impede a aplicação dessa legislação.
“O Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] chegou a usar a Lista Suja como documento oficial de que o empregador explorou o trabalho escravo para abrir um processo de expropriação das suas terra, mas a AGU [Advocacia Geral da União] entendeu que, por não ser regulamentada, a emenda era ilegal”, explica a procuradora do Trabalho Lys Sobral Cardoso, coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do MPT ao DW.
A discussão, de acordo com ela, remete à década de 1990, com a Lei da Reforma Agrária (Lei 8.629). Mas, a bancada ruralista não permitiu que ela avançasse.
Nos anos 2000, a discussão chegou a ser pautada no Congresso, mas mais ‘útil’ para mudar a definição de trabalho escravo prevista no Código Penal para ‘trabalho forçado’.
No atual governo, a possibilidade de avanço é nula. O presidente Jair Bolsonaro (PL) já disse várias vezes ser contra a expropriação de terras de quem utiliza trabalho escravo.
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Segundo ele, o empregador “não quer maldade para o seu funcionário nem quer escravizá-lo. Isso não existe. Pode ser que exista na cabeça de uma minoria insignificante, aí tem que ser combatido”, minimizou.
Trabalhadores escravos e latifúndios
A coordenadora do programa Direitos Socioambientais da Conectas, Julia Neiva, ressalta a relação histórica entre as ocorrências de trabalho escravo e os latifúndios no país.
“O Brasil foi construído a partir de grandes latifúndios baseados em trabalho escravo, com grandes proprietários de terra escravagistas. E até hoje setores fundamentais da economia brasileira, como a produção do café e a agropecuária, dependem de mão de obra escrava”, diz Neiva.
Por isso, ela defende a reforma agrária como maneira de “reconhecer a divisão extremamente desigual de terras no Brasil”.
“Esses trabalhadores não têm acesso nem ao mercado de trabalho formal e nem aos meios de produção, ou seja, a terra. Por isso, a reforma agrária voltada para essas pessoas teria o poder de erradicar o trabalho escravo no Brasil”, afirma Cardoso.