No último dia 4 de dezembro, a Folha de S. Paulo publicou a seguinte matéria: “Natura investe em startup de enteado de fundador e causa desconforto no mercado”. Em seguida, o subtítulo assim dizia: “Segundo influencer, aporte na Singu teria motivação pessoal; companhia diz que amplia participação digital no negócio”[1].
Confesso que o que me chamou atenção na notícia foi esse “ar” de fofoca que abala o mercado financeiro. Enteado de fundador, como será a cara dele? Que empresa é essa? Desconforto no mercado? Até parece que esse é o primeiro negócio de família no mercado financeiro. “Segundo influencer” foi o ápice, a fofoca é pós-moderna, não foi espalhada por um tio na festa de família, mas sim por um influencer.
Era tanta coisa aparentemente interessante que fui pesquisar. O tal fundador da Natura é o senhor Guilherme Peirão Leal, candidato a vice-presidente na chapa com Marina Silva, em 2010, dono de ações da Natura e co-presidente do conselho, ao lado de Antônio Luiz da Cunha Seabra e Pedro Luiz Barreiros Passos[2]. Guilherme é casado com Samira Farah, cujo o filho, Matheus Farah, é sócio da Singu.
Segundo a Natura, “pelos termos do acordo, a empresa tem o direito de adquirir 100% da Singu, a depender do atingimento de metas previamente estipuladas entre as partes”[3]. Bem, há outros detalhes apresentados pelo influencer em questão que fazem pairar dúvidas sobre a ética do negócio, a Natura pouco esclarece, o que levou as ações da empresa a caírem, chegando a perder 2,5 bilhões de valor de mercado em um único dia[4].
Contudo, pouco me importa o valor de mercado da Natura, bem como quem é o influencer. O que importa é o que essa notícia nos conta sobre o Brasil, para além do poder de uma fofoca.
Bem, vamos lá. Matheus Farah, que também se apresenta como Matheus Farah Leal, sobrenome de seu padrasto, é sócio de um escritório de arquitetura e foi um dos 90 brasileiros de destaque pela revista Forbes na lista FORBES Under 30 em 2019, na área de Artes Plásticas e Literatura. Segundo ele “arquitetura e arte conversam diretamente. Arquitetura é uma forma de manifestar a arte”[5]. Para além da formação profissional, quando buscamos Matheus Farah Leal, encontramos principalmente notícias sobre festas, viagens e a fofoca atual.
A Singu, por sua vez, se apresenta como líder em delivery de serviços beleza e bem-estar, ou seja, uma plataforma com formato semelhante à Uber. No site promete beleza e bem-estar no conforto de casa e com o serviço “Singu now”, você recebe uma artista Singu em apenas 40 minutos. No fim da página do site, temos a parte direcionada as trabalhadoras, com a foto de uma mulher negra sorrindo. O site tenta atrair as trabalhadoras com a promessa de aumento de renda, afirma que as profissionais ganham até 4 mil reais por mês “e conseguem ter mais liberdade e flexibilidade de horários”. No entanto, não há qualquer indicação de como funciona a relação entre a startup e as trabalhadoras.
No Facebook, as avaliações variam, mas em geral são elogios às profissionais e reclamações contra a empresa. Uma avaliação específica, feita há dois anos, chamou a minha atenção: “Desprezo total pelas parceiras manicures. Tdo (sic) dia admitem todo dia demitem. Tratam como ratos”. Seguido por 8 curtidas e 4 comentários.
Em formato não muito diferente, as consultoras Natura também aparecem na sua casa, no seu trabalho, onde você estiver, oferecendo os produtos da empresa em troca de um percentual sobre as vendas, usufruindo de todas as benesses do empreendedorismo: liberdade, flexibilidade, autonomia e precariedade.
Aliás, quem é o Uber na fila do pão quando o assunto é liberdade? Natura é uma empresa de capital aberto, com valor de mercado que chega a atingir 70 bilhões de reais[6] [7], que desde 1974, cinco anos após a sua fundação, conta com suas colaborados para crescer, a chamada “venda direta”. Após a abertura de capital em 2004, a Natura abriu a primeira loja em 31 anos na cidade de Paris, França, em 2005. Em 2009, ao completar 40 anos, atingiu o número de 1 milhão de consultoras, sendo que só em 2016 foram abertas as lojas no Brasil e em Nova Iorque[8].
Ou seja, durante 35 anos de franca expansão, a Natura contou somente com suas consultoras. Não são sócias, acionistas, tampouco possuem vínculo empregatício, aposentadoria, saúde e bem-estar, mas foram fundamentais para o enriquecimento dos homens brancos donos da empresa, pois na loja da Oscar Freire, o sucesso não chegou.
A verdade é que o modelo de venda direta da Natura é apenas uma herança da escravidão. Os escravos de ganho trabalhavam nas mais diversas atividades no ambiente urbano, no entanto, tinham que efetuar um pagamento aos seus senhores, uma meta diária, semanal ou mensal. As ofertas de emprego concentravam-se em serviços, sendo que maior parte eram direcionadas às mulheres, seja no trabalho doméstico ou no comércio ambulante. Essa mobilidade permitiu que as escravas, trabalhando em diversos empregos, conseguissem juntar dinheiro e eventualmente comprar a sua alforria.
Veja, não é de hoje que o esforço pessoal faz as pessoas conseguirem liberdade. Ironia a parte, a liberdade é um negócio lucrativo, que de tempos em tempos ganha nova roupagem, permite explorar, criar companhias bilionárias e ainda oferece um conforto psicológico, porque, afinal, poderia ser pior.
Com o fim da escravidão, as mulheres continuaram nos mesmos postos de trabalho. Isso porque, com o projeto de modernidade e branqueamento, os negros foram expulsos dos postos de trabalho mais especializados e assalariados, como de parteira, ama de leite, cocheiro, seja em razão da preferência pelo trabalho imigrante, seja por meio de legislação que vedava algumas profissões aos trabalhadores negros ou que estabelecia regras rígidas para o trabalhador negro. Segundo Ramatis Jacinto, a nova lógica capitalista que se erguia transformava “o trabalho em algo digno e até abençoado, desmoralizando a ideia de ‘trabalho negro’, flexibilizando os conceitos e possibilitando aos brancos exercerem profissões antes exclusivas de negros”[9].
O que se vê, portanto, é um cenário em que o trabalho negro é cada vez mais restringido, mantendo a população negra pobre e em condições de subalternidade e em trabalhos desvalorizados.
Mais de 100 após a abolição da escravatura, empresas como a Natura e a Singu não informam o perfil de suas colaboradoras. No entanto, não precisaríamos de IBGE se fizéssemos um pequeno esforço mental de tentar lembrar a cor e o gênero da manicure [10].
Diante desse cenário, a pergunta que fica é: como a Singu pode ser considerada uma startup se explora um modelo de negócio tão antigo? As ganhadeiras já realizavam delivery de forma autônoma, há nada novo sob o sol.
A verdade é que Matheus Farah Leal, ao investir na Singu, apenas continuou os negócios da família, aplicou o que aprendeu com as gerações anteriores, cuidou de sua herança. E a Natura agora possibilitará que mais de um milhão de ganhadeiras atue não só no comércio, mas também no setor de serviços. Tudo isso, dentro do Estado Democrático de Direito e com a anuência da sociedade, do mercado, da política e do judiciário
Nesse aspecto, não é de se estranhar que o Supremo Tribunal Federal proteja “a liberdade de formular estratégias negociais indutoras de maior eficiência econômica e competitividade”[11]. Afinal, esses senhores e senhoras herdaram a normalização da exploração do outro, estão acostumados com essa prática, que vem dando muito certo, veja a Natura. Então, quem é a Constituição para dizer o contrário? Ainda mais quando a exploração vem com essa cara de modernidade, envolta por autonomia, liberdade, eficiência, tecnologia e estrangeirismos. Deve ser irresistível ser um homem moderno, alguém que defende a modernização do Estado, da economia, assim como a elite branca brasileira no pós-abolição. Só que dessa vez, não trazem imigrantes, apenas desconstituem os direitos daqueles que nunca os tiveram de fato.
Anna Clara Gontijo Balzacchi – Advogada graduada pela UnB, membra do Grupo de Pesquisa Trabalho Constituição e Cidadania da UnB e do Lidera – Observatório Eleitoral do IDP.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/12/natura-investe-em-startup-de-enteado-de-fundador-e-causa-desconforto-no-mercado.shtml
[2] https://ri.naturaeco.com/pt-br/naturaco-holding-s-a/conselho-e-comites/
[3] https://www.infomoney.com.br/mercados/acao-da-natura-co-cai-na-semana-com-a-empresa-no-centro-de-uma-polemica-nas-redes-sociais-coincidencia-ou-impacto-real/
[4] https://exame.com/exame-in/efeito-raiam-natura-vira-alvo-de-disputa-entre-influencers-de-mercado/
[5] https://forbes.com.br/listas/2020/05/under-30-2019-os-90-destaques-brasileiros/#foto10
[6] https://einvestidor.estadao.com.br/mercado/natura-o-que-esperar-acoes
[7] O valor antes das ações caírem era de 70 bilhões de reais. https://exame.com/exame-in/efeito-raiam-natura-vira-alvo-de-disputa-entre-influencers-de-mercado/
[8] https://www.natura.com.br/a-natura/nossa-historia
[9] JACINO, Ramatis. O trabalho do negro livre na cidade de São Paulo 1872-1890. 2007. Dissertação (Mestrado em História Econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. doi:10.11606/D.8.2007.tde-06072007-104911. Acesso em: 2020-12-05.
[10] http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/2515/1/td_0618.pdf
[11] ADPF 324, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 30/08/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-194 DIVULG 05-09-2019 PUBLIC 06-09-2019.