A nação mais capitalista da Terra pode dar exemplo para a garantia de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras que prestam serviços por meio de aplicativos, como a Uber e a Lytf. Está em tramitação no Senado da Califórnia um projeto de lei que fará com que essas empresas passem a designar motoristas como funcionários. Os senadores estaduais da Califórnia estão prontos para votar a proposta que dificulta que essas companhias classifiquem prestadores de serviço como contratados independentes. Vale lembrar que a legislação trabalhista estadunidense não tem carteira de Trabalho como a brasileira.
Caso seja aprovada, a Assembly Bill 5 (AB5) significará uma reviravolta impressionante. O mesmo estado que supervisionou o nascimento desse tipo de empreendimento baseado no compartilhamento de serviços por meio de aplicativos, agora se esforça para corrigir alguns de seus piores efeitos. Os motoristas se queixam há muito tempo de salários baixos, falta de proteção e incapacidade de se unir para efetuar mudanças. Houve histórias sobre motoristas dormindo em seus carros porque não podem se dar ao luxo de viver nas cidades onde trabalham, lutando para sobreviver e se sentindo totalmente à mercê de um algoritmo sem rosto que determina todos os seus movimentos. O AB5 tem o objetivo de tratar dessas preocupações reais.
O assunto tem sido tratado há mais de um ano pelos californianos. Em maio de 2018, a Suprema Corte da Califórnia decidiu a favor dos trabalhadores de uma empresa de entrega de documentos chamada Dynamex Operations West que buscavam status de emprego. Os motoristas do serviço de entrega apresentaram seu caso há mais de uma década, argumentando que eles eram obrigados a usar o uniforme da empresa e exibir seu logotipo enquanto forneciam seus próprios veículos e assumiam todos os custos associados às entregas. O AB5 destina-se a codificar a decisão da Dynamex em lei.
As gigantes Uber e Lyft sentirem o aperto. Tanto que no dia 29 de agosto apresentaram uma proposta dramática e inesperada como um último esforço para descarrilar a legislação na Califórnia que poderia potencialmente explodir a indústria de carona. Na petição, que ao que tudo indica falhará, as empresas prometeram pagar a seus motoristas US$ 21 por hora (mas apenas durante uma viagem), fornecer licença médica e capacitá-los a ter uma voz coletiva, em um aceno para sindicalização.
Uma das autoras da lei, a deputada democrata Lorena Gonzalez (San Diego), afirma que a AB5 pretende impedir a classificação incorreta dos trabalhadores. O projeto exige que as empresas usem um padrão legal chamado “teste ABC” ao determinar o status de emprego: A): O trabalhador está “livre do controle e direção” da empresa que os contratou enquanto executava seu trabalho. (B): o trabalhador está realizando um trabalho que fica “fora do curso ou tipo de negócio habitual da entidade contratante”.(C): O trabalhador tem seu próprio negócio ou comércio independente além do trabalho para o qual foi contratado.
O AB5 foi aprovado na Comissão de Apropriações do Senado em agosto e deve ir para o plenário do Senado ainda neste mês de setembro. A matéria se tornou um elemento importante para a corrida presidencial de 2020. Vários democratas com ambição presidencial, como os senadores Elizabeth Warren, Kamala Harris e Bernie Sanders, aprovaram o projeto. O governador da Califórnia, Gavin Newsom, tem fortes alianças com o trabalho e o setor de tecnologia e empresas de tecnologia e tem atuado para negociar um acordo. Já Uber e Lyft apoiam um projeto de lei separado para criar uma nova designação para trabalhadores dessa nova economia.
Em âmbito federal, essa questão caminha em direção oposta com o presidente Donald Trump e os colaboradores do Conselho Nacional de Relações Trabalhistas. No início deste ano, um advogado trabalhista federal opinou que os motoristas de carona são contratados independentes, não funcionários. O Departamento do Trabalho também afirmou que trabalhadores que atuam como motoristas do Uber são contratados inelegíveis para salários mínimos e horas extras. Um juiz federal decidiu basicamente da mesma maneira no ano passado, o que é considerado a primeira classificação dos motoristas da Uber de acordo com a lei federal. Mesmo que a AB5 seja aprovada, os sindicatos que procuram organizar motoristas enfrentam fortes ventos contrários.
A ventania vem se formando há anos. Centenas de motoristas do Uber entraram em greve antes do IPO tão esperado da empresa em maio deste ano. Os motoristas disseram que querem melhores condições de trabalho e mais transparência do Uber sobre salários e acesso à plataforma. Existem alguns grupos de trabalho que representam a categoria, mas nenhum tem a capacidade de negociar coletivamente com as empresas sobre questões essenciais, como escalas salariais, horas e remuneração dos trabalhadores. Isso poderia dificultar seriamente os efeitos mais amplamente esperados da lei: uma classe de motoristas com poderes, forçando Uber e Lyft a virem à mesa para estabelecer um acordo de negociação coletiva. Ainda assim, a passagem do AB5 pela Califórnia pode ter um efeito dominó para inspirar outros estados e até países como o Brasil a debaterem a precarização do Trabalho na Era da Informação.
Com informações do The Verge