“A esquerda consegue enxergar o quilombola não binário da extrema periferia de uma cidade e não consegue enxergar 50 milhões [de evangélicos].”
Esta frase do jornalista Ricardo Alexandre representa uma síntese tão poderosa sobre a relação entre intelectuais progressistas e evangélicos pobres que o filósofo da USP Paulo Arantes a leu durante uma entrevista ao vivo para o canal Opera Mundi do Youtube. “[Essa frase] é o epitáfio da esquerda no Brasil neste momento,” comentou.
A fala do Ricardo, que é batista e autor de “E a Verdade os Libertará” (Mundo Cristão 2020), está no segundo episódio do documentário “Ser Evangélico no Brasil”, lançado no fim de setembro pelo UOL.
O que isso tem a ver com o que aconteceu na votação de domingo?
Institutos de pesquisa e a sociedade foram buscar às pressas justificativas para a discrepância que apareceu entre o número de votos previsto para o presidente Bolsonaro e quanto ele recebeu. É perigoso supor que o crescimento aconteceu na reta final da campanha a partir da mobilização de pastores.
“Não temos evidência de que esse resultado acima do esperado favorecendo Bolsonaro se deva a um salto no voto evangélico,” explica Vinicius do Valle, cientista político e pesquisador do tema.
“Na verdade,” ele diz, “a evidência que a gente tem aponta no sentido contrário: que o voto evangélico já estava estabilizado em patamares altos a favor do presidente, dificultando que acontecesse uma subida maior dentro desse grupo.”
Por dialogar com os “50 milhões de brasileiros” e não abandoná-los para a direita, o candidato do PSB ao governo do Rio, Marcelo Freixo, deslocou seu eixo de atenção para ouvir como mães pobres percebem o tema da legalização das drogas e foi atacado durante a campanha por seus adversários e por representantes do campo progressista.
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A esquerda sente-se envergonhada de ir à igreja e fica deslocada nesses espaços. Faz isso por obrigação em época de campanha. Acha religião, especialmente a evangélica, uma mistura entre babaquice e lavagem cerebral. O evangélico comum —que as lideranças de esquerda geralmente não conhecem de perto— percebe isso. E vota a partir dessa informação.
O presidente investiu quatro anos construindo relacionamentos com líderes e com frequentadores de igrejas. “Nós sabemos que o Bolsonaro não é crente,” me disse uma evangélica da Assembleia de Deus. “Mas vemos ele nas igrejas defendendo os nossos valores. O Lula, a gente não sabe qual é a religião dele. Ele diz que é católico, mas não vemos ele em igreja.”
É importante dar crédito também ao uso competente, pela equipe do presidente, da comunicação digital, fazendo informação circular via boca a boca, em ambientes privados.
Estamos falando de um terço dos brasileiros. Quantas campanhas de candidatos de esquerda para cargos majoritários incluíram evangélicos em posições de liderança? Possivelmente nenhuma. Quantos desses candidatos e líderes leram e conhecem relativamente bem a Bíblia, o livro que serve de ponto de partida para se dialogar com esse grupo? Evangélicos ou especialistas são chamados para opinar em situações pontuais, e isso é considerado suficiente.
Ouço frequentemente a pergunta: “Como a gente faz para os evangélicos entenderem…” O rapper Emicida comentou esse tipo de fala: “Tem um tom condescendente muito perigoso dessas pessoas que se nomeiam progressistas, que é: ‘Ah, eu vou falar com a minha empregada.‘ ’Ah, eu vou valar com o porteiro do meu prédio.‘ ’Ah, os evangélicos não conseguem raciocinar…’ A distância que essas pessoas estão do povo na rua é muito perigosa.”
Em 100 segundos, @emicida desenha no #RodaViva a crise contemporânea da esquerda nacional a partir da incompreensão do papel social da religião no Brasil de hoje #EmicidaNoRodaViva pic.twitter.com/pwwW3e3IBT
— Jeff Nascimento (@jnascim) July 28, 2020
O PT ainda pode vencer a eleição presidencial. Mas ecoo a impressão do teólogo Ronilso Pacheco: “Seis milhões de diferença não garante nada. Extrema direita tem capacidade de mobilização, máquina e rede… A campanha de Lula vai ter de correr muito.” E se não fizer um esforço real para se aproximar de líderes evangélicos com a disposição para ouvir e dialogar, em quatro anos, o ex-ministro Tarcísio de Freitas será o próximo presidente da República.
Por Juliano Spyer, que é antropólogo, pesquisador do Cecons/UFRJ, autor de Povo de Deus (Geração 2020) e criador do Observatório Evangélico.