
O presidente Jair Bolsonaro (PL) editou o decreto que cria o Comitê Gestor dos Planos de Enfrentamento da Covid-19 para os Povos Indígenas. O decreto foi publicado na edição da madrugada desta terça-feira (11) do “Diário Oficial da União” (DOU), quase dois anos após o início da pandemia, em março de 2020.
De acordo com o texto publicado no DOU, o Comitê deve ser responsável por monitorar ações de combate à pandemia nos povos indígenas em isolamento ou em contato recente.
Compete ao Comitê Gestor:
- a execução dos planos de enfrentamento da covid-19 para os povos indígenas;
- a adoção de medidas de proteção e de promoção da saúde dos povos indígenas isolados ou em contato recente;
- a adoção de outras medidas destinadas à saúde dos povos indígenas no contexto da pandemia de covid-19.
Em julho de 2020, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou a adoção pelo governo federal de cinco medidas para proteger as comunidades indígenas e evitar a mortalidade pela covid-19.
Um ano depois, um estudo brasileiro sobre a prevalência da doença por etnia e raça, o Epicovid, feito pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) apontou que população indígena de contexto urbano é o grupo mais vulnerável no Brasil à infecção de covid-19 e tem 2,25 vezes mais chances de contrair o vírus do que os brancos. Está à frente inclusive da população negra, que fica 1,49 vezes mais exposta ao risco. Entre os entrevistados pela pesquisa em 133 municípios brasileiros, 1.219 se declararam indígenas.
A omissão seguiu, já que o governo Bolsonaro jamais se mobilizou para proteger os mais vulneráveis da pandemia. O Epicovid serviria justamente para indicar a prioridade das prioridades. “É indicador de que os indígenas deveriam ter um olhar diferenciado para proteção”, destaca o professor e epidemiologista da UFPel Bernardo Horta.
Embora a pesquisa tenha sido quantitativa, Horta acredita que a vulnerabilidade identificada tenha relação com questões estruturais, como a moradia, e o acesso à informação sobre meios de prevenção, além de outros fatores como o genético.
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O epidemiologista lembrou ainda que os grupos de maior vulnerabilidade geralmente são também os que registram mais óbitos. Esse foi um dos motivos para a criação de prioridades nas políticas de proteção, adotadas por estados e municípios, mas ignorada por Bolsonaro.
A pesquisa, segundo Horta, foi feita na primeira onda da pandemia, de 14 a 21 de maio, de 4 a 7 de junho e de 21 a 24 de junho de 2020. Em três décadas de medicina, o epidemiologista afirma que nunca viu algo na dimensão da covid-19. A crise sanitária que mais se assemelha é a gripe espanhola ocorrida há mais de 100 anos.
Ao contrário de outros estudos sorológicos, que detectam os anticorpos totais, capazes de revelar se a pessoa tivera contato prévio com o Sars-CoV-2 ou se já fora vacinada, o projeto do Epicovid procurou avaliar a imunidade celular e níveis de anticorpos neutralizantes. Em termos científicos, o estudo da UFPel detecta a proporção de moléculas que é capaz de neutralizar a ação do vírus. O que o Epicovid inovou foi em mostrar que populações de baixa ou média renda tendem a ter menores produções de anticorpos neutralizantes e imunidade celular, e isso deveria ser orientador de qualquer política pública séria.
Povo indígena não recebeu atendimento diferenciado
Pelo menos 35 mil indígenas, que vivem na capital amazonense não receberam atendimento diferenciado das autoridades de saúde municipal, estadual e federal. Os números são estimados pela Coordenação das Organizações dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime).
Ao não seguir as orientações do Epicovid, a pesquisa da UFPel, o governo deixou de priorizar as populações de etnias não aldeadas e mesmo as instituições de defesa dos direitos indígenas ficaram sem saber do grau dessa vulnerabilidade.
Apesar de haver uma determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Justiça Federal, o Estado do Amazonas ainda não vacinou esses povos na capital nos grupos prioritários.
Manaus é a capital emblemática da pandemia da covid-19. A cidade passou por duas grandes ondas da pandemia. A população indígena da cidade nunca recebeu atendimento diferenciado. O alto índice de contágios também não foi contabilizado pelas autoridades públicas.
Indígenas receberam ‘kit-covid’
O Ministério da Saúde distribuiu pelo menos 265 mil comprimidos do “kit-covid” – cloroquina, azitromicina e ivermectina – a população indígena em cinco estados, com o propósito de tratar infecções pelo coronavírus. Os três medicamentos não têm eficácia para covid-19.
Parte dessas drogas foi comprada diretamente por Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), vinculados ao ministério e com atuação de saúde na ponta, junto às comunidades indígenas.
Secretaria de Saúde Indígena orientou uso do ‘kit-covid’
Um informe técnico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), de junho de 2020, orientou os DSEIs a “instruir seus respectivos processos de aquisição” de cloroquina e hidroxicloroquina, caso municípios e estados se negassem a fornecer o medicamento.
O envio maciço de medicamentos sem eficácia a indígenas entrou no foco da CPI da Pandemia no Senado. A estratégia da atual gestão do Ministério da Saúde e do general da ativa Eduardo Pazuello, que impulsionou a prática ao longo de sua administração na pasta, é sustentar que os comprimidos se destinaram aos tratamentos previstos na bula.
A cloroquina, por exemplo, é usada no tratamento de malária. A doença atinge cerca de 194 mil brasileiros por ano, dos quais 193 mil (99,5%) na região amazônica.
A azitromicina é um antibiótico usado principalmente no tratamento de doenças respiratórias. E a ivermectina se destina a infecções por parasitas.