Por Marcelo Hailer
As primeiras imagens do documentário “Rolê – Histórias dos Rolezinhos”, dirigido por Vladimir Seixas, mostra um grupo de pessoas da periferia do Rio de Janeiro ocupando um shopping na Zona Sul da cidade. Em reação, os comerciantes começam a fechar as lojas com medo de serem assaltados.
Em seguida, o filme dá um salto para 2013 com as imagens de milhares de jovens ocupando um shopping, mas agora é no estado de São Paulo, na cidade de Guarulhos. Assim como há 13 anos, aqueles corpos negros não são bem-vindos, a polícia é acionada e muitos dos jovens agredidos e presos.
Mas não é o shopping um lugar de livre trânsito? Existe alguma lei que impeça de tais pessoas estarem reunidas num lugar destinado para o lazer? Ambos os casos levantaram amplas discussões, na imprensa e na academia, que visavam discutir a farsa da democracia racial no Brasil e como a sociedade brasileira é profundamente marcada pelo preconceito de raça e classe.
“Esse filme é um desdobramento de um curta, que eu realizei na escola de cinema, e que chama Hiato, que é sobre a ocupação do Rio Sul, que fica em Botafogo, no ano 2000. O curta é um registro histórico de pessoas que ocuparam o shopping e a imagem que se tem desse evento são de pessoas andando no shopping e que causou um fato político pelo fato de serem de onde elas eram: moradores de favela, pessoas sem teto e terra, e eles resolveram fazer a ocupação desse shopping”, revela Vladimir Seixas, diretor de “Rolê – Histórias dos Rolezinhos”.
Seixas conta que o filme Hiato, que é de 2008, volta a circular entre 2013 e 2014 por conta dos rolezinhos. “Eu comecei a articular esses conflitos raciais em centros comerciais e como isso é popular e como isso mexe com as pessoas: essa coisa de não ser pertencente a um espaço e não poder entrar e só de estar ali é uma afronta. Então, a ideia foi investigar esses rolezinhos: por que é um tema muito polêmico?”, questiona Seixas.
Os Rolezinhos em SP
O documentário “Hiato”, segundo Seixas, circulou por escolas e presídios e, sempre que era exibido, as pessoas relatavam experiências racistas que tinham vivido no shopping, assim como os personagens do primeiro filme e também do “Rolê”.
Mas, Seixas explica que, além de abordar a ocupação dos shoppings, o documentário também acompanha a vida de alguns personagens que entre 2013 e 2014 organizaram os rolezinhos.
“O filme não fica preso em 2013 e 2014, ele tenta de certa forma articular todas essas manifestações. A gente foi investigar a partir das vidas, se a gente ficasse só com as pessoas dando entrevistas sobre o que elas viveram, a gente ia perder esse caráter do que de fato mobiliza essa pessoas de entrar em um shopping, em uma loja”, conta.
Um desses personagens é Jefferson Luís que, em 2013 organizou um rolezinho no Internacional shopping de Guarulhos e que reuniu milhares de jovens que foram expulsos e enquadrados pela Polícia Militar. À época adolescente, a ação protagonizada por Jefferson promoveu todo um debate no Brasil, porém, ao reencontrarmos com ele, a sua vida em termos materiais não avançou e, além disso, tais espaços continuam ordenados por uma ideologia racista que continua a expulsar os corpos negros dos centros comerciais.
“Uma das camadas do filme é a vida e, de uma certa forma a ideia de imobilidade. Quando eu fui gravar com ele (Jefferson) o teaser, ele morava numa favela, onde ele nasceu e foi criado, do lado do grande shopping que ele fez o maior rolezinho, que deu 100 mil pessoas confirmada (no evento do Facebook) e foram 5 mil pessoas e deu um rebuliço danado. E depois, quando eu volto, que eu consegui captar o dinheiro para fazer o filme, ele já foi despejado, ele está morando 16 quilômetros mais longe do centro de Guarulhos, está mais na periferia, em um conjunto habitacional e as questões de lazer estão mais difíceis… lazer e vida, né? O trabalho está mais difícil. De uma certa forma, caminhou para trás”, analisa Seixas.
Além de pouco ter desfrutado de todo o debate sobre políticas publicas de lazer e ter sido expulso para ainda mais longe daquele shopping que um dia milhares de jovens ocuparam, Jefferson, em determinado momento do filme reflete que sempre quis estar perto do centro, mas, cada vez mais sua vida é afastada de tal sonho. A reflexão do jovem está diretamente relacionada com a ausência de políticas públicas que pensem uma cidade para todos e não apenas para aqueles que vivem nos centros ou regiões mais abastadas.
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“É o direito à cidade, eu quero participar dela, eu que estar no centro e cada vez mais eu me encontro na periferia e eu sigo: então ele (Jefferson) segue jogando o videogame dele, ele segue hoje fazendo delivery, ele é pai de família, a família meio que está toda próximo dele ainda, que é no Condomínio Pimentas, em Guarulhos. Essa dimensão é uma camada central para entender os rolezinhos. Não é uma coisa que você vai entender com uma pessoa da academia, a gente preferiu chegar nessas camadas de vivências”, explica o diretor.
A história do Brasil
Além da história das ocupações dos shoppings realizadas por pessoas das periferias, o documentário de Vladimir Seixas é também um retrato de ascensão e queda do Brasil recente. No primeiro ato estamos em 2000, fim do governo FHC (1994-2000) e primeira onda do neoliberalismo, posteriormente estamos entre 2013 e 2014, o país e várias camadas da sociedade estão vivenciando ascensão social e econômica e a presidenta Dilma seria reeleita logo depois.
Porém, no terceiro ato do filme estamos diante da ascensão da extrema direita, a presidenta Dilma já tinha sido vítima de um golpe, Marielle Franco assassinada e nos deparamos com a eleição do presidente Bolsonaro (sem partido).
Parecia que, enfim, o Brasil tinha encontrado o seu caminho, mas na verdade, acabou entrando no buraco do racismo, da homofobia e do negacionismo protagonizado por aquele que hoje ocupa o Palácio do Planalto.
“Nós filmamos em 2018, no fatídico ano da eleição e a edição dele é feita durante a pandemia. Tem uma linha (narrativa) de um buraco que a gente vai se enfiando cada vez mais e que nos faz isso: ‘quem matou Marielle’ ainda é contemporâneo, a gente filmou em 2018 e em 2021 a gente está discutindo a atualidade disso (o assassinato de Marielle), então tem essa dimensão de história recente, tem a dimensão de continuidade: o Jefferson indo mais para a periferia, o Brasil indo mais para o buraco. Quando a gente foi gravar com a Priscila (uma das personagens) ela estava falando muito do Bolsonaro, então nós trouxemos isso pro filme, colocamos ela pra assistir a apuração e a gente filma o rosto dela e com a expressão dela não precisava mostrar o que estava acontecendo”, explica.
Modernizar para manter o arcaico
O sociólogo Clóvis Moura (1925-2003) ao estudar a transição da economia escravista para a economia do trabalho assalariado no Brasil pontua que essa transformação no país se deu (dá) de maneira paradoxal, que ela atua para modernizar a indústria e a vida no que diz respeito a bens materiais, mas ao mesmo tempo para manter a estrutura arcaica, ou seja, o corpo negro não é mais escravizado, mas ainda não desfruta de bons salários e do acesso, em sua plenitude, aos bens materiais e aos espaços.
Além disso, a mentalidade escravista também não se esvai com modernização da estrutura da sociedade brasileira. A tese de Clóvis Moura está em cada frame do documentário “Rolê – Histórias dos Rolezinhos”: se algumas das personagens conseguiram terminar a faculdade, abrir o próprio negócio, os seus corpos ainda são expulsos de espaços como os shoppings, ainda são vigiados quando entram em alguma loja, ou como é o caso de Jefferson: apesar de sacudir um país a partir dos rolezinhos, a sua vida e seu corpo foram cada vez mais expulsos para longe da vista do “cidadão de bem”.
Um dos momentos finais do documentário de Seixas são as imagens de João Alberto Freitas sendo espancado até a morte por seguranças do Carrefour, mas também de tantos outros corpos negros que são tratados como suspeitos quando estão… consumindo. Diante dessas cenas se torna inevitável perguntar ao diretor como ele está em relação ao futuro do Brasil.
“Difícil estar otimista nessa conjuntura. Esse projeto foi financiado pelo Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), desde que o governo Bolsonaro assumiu, ele ficou paralisado, nenhum projeto andou. Era uma forma de fomento contínuo, todo ano se aprovava cerca de 900 documentários de baixo orçamento e isso fez com que algumas produtoras como a nossa tivesse acesso para fazer esse tipo filme, isso foi extinto, está paralisado, nada anda na Ancine (Agência Nacional de Cinema), não tem como estar otimista neste contexto, ainda mais em um contexto onde a Cinemateca pega fogo, filmes foram perdidos, documentos da Embrafilme, então a gente esta bem pessimista em relação a cultura no país e acho que esse filme pode, inclusive, servir para esse debate: a liberdade que a gente teve de fazer um filme de baixo orçamento, a liberdade de escolher o tema, a forma de se fazer, isso é fundamental para a gente pensar a arte no país. Hoje em dia esse tipo de projeto jamais passaria”, lamenta Wladimir Seixas.
O documentário “Rolê – Histórias dos Rolezinhos” ainda não tem previsão de lançamento no Brasil. Ele fez a sua estreia no RIFF 2021 nesta quinta-feira (12), que é considerado um dos festivais mais importantes dos EUA e onde o filme de Wladimir Seixas concorre ao prêmio de Melhor Documentário.