A meio mundo de distância, o que teriam em comum Austrália e Nova Zelândia com o Brasil? Além do fato de serem relativamente novos, esses países da Oceania apostaram na economia criativa para a base do seu desenvolvimento. Por isso, não apenas o Brasil, mas América Latina, Caribe e África deveriam se inspirar nos países do Sul global. É o que acredita Cláudia Leitão, ex-secretária de Economia Criativa do Ministério da Cultura (MinC), antropóloga e professora. Ela foi a convidada da 11ª live sobre a “A Revolução Brasileira no Século 21”, que debateu a Economia Criativa, nesta quarta-feira (16).
Cláudia aponta bons modelos do Sul global
“Chamo a atenção que quem está saindo bem da pandemia é a Oceania. Está na hora do Sul olhar para o Sul. Está na hora da América do Sul, Caribe e África olharem para a Austrália, que é que traz a criatividade para uma pauta de desenvolvimento de um país que também vivia do carvão, da poluição, de uma certa exploração dos aborígenes, e que resolve mudar a sua agenda. Esse negócio de sair exportando metal, laranja, carne de boi, soja é de uma pobreza absurda. É como se nós estivéssemos realmente paralisados num tipo de economia totalmente insustentável.”
Cláudia Leitão
A perspectiva desses países é o que faz, na opinião de Cláudia, com que as cidades mais importantes no combate à pandemia e na qualidade de vida sejam australianas e metade neozelandesas. “Locais onde a relação entre governos, sociedade e empresas já está resolvida”, destaca a antropóloga.
A Revolução Brasileira na visão de Caio Prado Junior
“É muito importante a gente lembrar que enquanto Caio Prado Junior estava construindo uma obra fundamental para pensar o Brasil na perspectiva da economia, Gilberto Freire estava pensando as questões sociais brasileiras, Sérgio Buarque estava inquirindo sobre nossos traços, nossa forma de ser, Mario de Andrade estava andando pelo Brasil fazendo incursões importantíssimas para entender esse Brasil profundo. Eram homens pesquisadores, mas eram homens políticos, preocupados em conhecer o Brasil profundo. Está faltando para nós exatamente homens e mulheres que se dediquem a essa diversidade.”
Cláudia Leitão
A série de debates é promovida pelo Instituto Pensar, o Socialismo Criativo e o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Participaram do evento o membro do Diretório Nacional do PSB, Domingos Leonelli; e a integrante da direção da Juventude Socialista Brasileira (JSB), Juliene Silva. A mediação foi feita por James Lewis.
Cláudia comenta clima de golpe no ar
Ela destacou também a crítica que Caio Prado Junior fez à transposição de categorias sociais, especialmente, as europeias, em prol de conceitos que de fato refletissem a sociedade brasileira sem tentar encaixá-la à padrões pré-existentes. E faz um paralelo entre o momento em que Caio Prado Junior publicou a Revolução Brasileira, dois anos após o golpe que levou o país à ditadura militar.
“É estranho nós imaginarmos que o Brasil, que tinha acabado de passar por um golpe quando Caio prado escreveu essa obra magistral, em 1966. Será que nós estamos às vésperas de um outro golpe? Tem uma sensação estranha de uma coisa que vai e volta. Há semelhanças”, alerta.
Pandemia escancara falência do sistema
Para a antropóloga, é necessário contextualizar a pandemia da covid-19 não apenas no Brasil, que se mostrou uma “patologia” de natureza do próprio modelo de desenvolvimento em curso.
Como uma convergência de diversos aspectos escancarados pela doença global: concentração de riqueza, sonegação de direitos sociais, precarização do mundo do trabalho. Além da destruição do meio ambiente e das pessoas.
“Genocídio é uma palavra que tem que voltar e já voltou à ordem do dia. Fome. O Brasil nesse momento volta a passar fome.”
Cláudia Leitão
A antropóloga avalia que a economia criativa surge em meio às tecnologias do início do século 21. Embora, frise que o século 20 ainda não chegou ao fim. Isso porque ainda pensamos à maneira das sociedades industriais, enquanto vivemos na era pós-industrial.
Para Juliene Silva, a economia criativa é o que vai virar a chave para um sistema mais humano de desenvolvimento.
“Quando a gente trabalha a economia criativa, a gente tá falando de suplantar um processo que gere valor agregado e competitividade econômica para o nosso país. O mais interessante da economia criativa agrega valor a partir da matéria humana de criatividade. Para desenvolver esse processo, a gente passa pelo processo mais dialogado pela nossa juventude, que é a educação. Entender o ponto em que estamos no país e tendo o desenvolvimento a partir de uma transformação educacional.”
Juliene Silva
Espírito comunitário
Em contraponto a esse cenário, a antropóloga observa que a economia criativa surge ao lado de outros modelos econômicos distintos, como as economias verde e colaborativa, por exemplo, mas com a mesma base no reconhecimento dos bens comuns. Do ar que respiramos às questões da existência e a busca pela felicidade. O que em sua avaliação difere muito “da velha visão industrial do século 20”. Por isso, é preciso criar alternativas ao modelo neoliberal. “Revolução significa emancipação”, define.
O presidente nacional do PSB, Carlos Siqueira, acredita que a crise, apesar de todos os problemas, pode ser o catalisador das mudanças. Mas isso só é possível se de fato o paradigma for transformado.
“A economia criativa é uma estratégia de desenvolvimento nacional que tem que estar conectada a um novo paradigma. Não apenas da economia, mas de um modo de fazer política, de tratar a biodiversidade. É uma visão revolucionária.”
Carlos Siqueira
O lugar da cultura
A cultura é sempre relegada a um lugar de menor importância no modelo neoliberal, observa Claudia Leitão. Apesar de ser justamente a cultura que nos faz seguir os modelos falidos que há tanto tempo caminhamos. “A cultura é essencial para mudar o nosso sistema econômico. É a base de transformação desse modelo de desenvolvimento”, afirma.
“A cultura que é sempre tratada na perspectiva dos setores artísticos, nunca é compreendida numa perspectiva muito mais ampla e transversal. Isso está claro nos governos brasileiros, historicamente a cultura é uma pasta sem importância, sem prestígio, sem recursos. É considerada a cereja do bolo e nunca entra numa discussão essencial e estratégica de desenvolvimento”, pondera a antropóloga.
Cultura e natureza
Citando Gilberto Gil, música e ex-ministro da Cultura, a antropóloga afirma que a diversidade cultural é, ao mesmo tempo, produto e processo da nossa biodiversidade natural.
“Proteger o patrimônio cultural é condição necessária para que o nosso patrimônio natural também permaneça. Nesse momento, nosso país está destruindo e assaltando essa biodiversidade e, junto dela, a biodiversidade natural. Não há como separar natureza de cultura”, comenta Cláudia.
Aprender com todos, defende Cláudia
Por isso, é necessário tratar a tecnologia na perspectiva de que ela se adapte à diversidade cultural, de modo a proteger e valorizar as diferentes visões de mundo.
“Para fazer isso, precisamos realmente reconhecer que para emanciparmos a sociedade brasileira, precisamos de alternativas ao modelo neoliberal e capitalista global. O professor Boaventura de Sousa Santos fala de uma ecologia dos saberes. Vamos aprender com todos. Vamos aprender com Nova Zelândia e Austrália, mas vamos aprender também com o sertão do Ceará, com o Pantanal, com a periferia do Rio de Janeiro e com tudo que o brasil está fazendo e ninguém vê”, conclama Cláudia Leitão.
Ela adverte também que não se pode pensar a tecnologia como condição que sugere igualdade, mas como instrumento a ser utilizado para a transformação. “A tecnologia não deve ser concebida como fenômeno universal e igual para todos os países e povos. Devemos tratar a tecnologia na diversidade”, afirma a antropóloga.
Paradigma criativo
Membro do Diretório Nacional do PSB e presidente do Instituto Pensar, Domingos Leonelli observa que as ideias de Cláudia Leitão auxiliaram na criação de várias teses da Autorreforma do partido.
“Tomamos a economia criativa não como mais um ramo da economia, mas um paradigma para o desenvolvimento. Um sistema que envolve a cultura, a tecnologia, pesquisa científica, novos tratamentos ambientais, como o choque de economia criativa na Amazônia para substituir a economia da depredação ambiental. Floresta em pé à base da pesquisa científica dos nossos biomas. Creio que essa nova economia vai muito além, que justifique e possibilite concretamente que o nosso país entre na economia do conhecimento não pelo consumo, mas pela produção. Umas das possibilidades é aproveitarmos o que temos de único, como a Amazônia.”
Domingos Leonelli
Ciclo de debates sobre a Revolução Brasileira
Já participaram do ciclo de debates o professor de história e youtuber Jones Manoel, a deputada socialista Lídice da Mata (PSB-BA), o governador do Maranhão, Flavio Dino, o ex-presidente da Fundação Palmares e mestre em cultura e sociedade, Zulu Araújo, o deputado constituinte Hermes Zaneti, os economistas Marco Antonio Cavalieri e Luiz Gonzaga Belluzo, o geógrafo Elias Jabbour, o professor José Luiz Borges Horta, o socialista e ex-presidente da Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), Jonas Donizette.
Confira a live na íntegra