O texto-base para o novo Código de Mineração, apresentado nesta quarta-feira (1º de dezembro) na Câmara dos Deputados, pretende classificar a mineração no país como “atividade de utilidade pública, de interesse nacional e essencial à vida humana”, o que pode conferir ao setor prerrogativas especiais.
Formado por um grupo de 16 deputados, muitos deles ligados a diferentes áreas do setor mineral, o Grupo de Trabalho (GT) do novo Código de Mineração da Câmara realizou 12 audiências entre agosto e novembro deste ano com expectativa de votar um novo código para o setor ainda este ano. O GT está sob relatoria da deputada Greyce Elias (Avante-MG), e teve alegação de conflito de interesses depois de notícias recentes sobre a ligação do marido da deputada com setores da mineração.
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As mudanças propostas flexibilizam regras ambientais, como dispensa de licenciamento ambiental e aprovação automática de processos parados por mais de um ano na Agência Nacional de Mineração (ANM) sem necessidade de outro tipo de análise. O resultado, caso a proposta avance no plenário da Câmara, pode acelerar a tramitação de mais de 90 mil processos em fase de concessão de lavra, pesquisa e lavra garimpeira que aguardam por autorizações ambientais e aprovação técnica da ANM.
Sem licença ambiental
Entre as maiores preocupações com o texto da minuta da relatora, que está com pedido de vistas coletivo e deve ser votado na próxima quarta-feira (8) , especialistas destacam que a dispensa de licenciamento ambiental para projetos que não causam “impactos significativos” soa como uma brecha para facilitar operações, principalmente de garimpo.
“É um grande problema retirar o licenciamento ambiental para lavra garimpeira. Isso, aliado com outras flexibilizações, vai aumentar a quantidade de permissões garimpeiras no país”, afirmou Jarbas Vieira, secretário do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração.
A minuta prevê autorização automática para pesquisa, lavra garimpeira, concessão de lavra, entre outros pedidos, caso não haja análise técnica da ANM em 365 dias. Já os pedidos de autorização de pesquisa, averbação de cessão de área e transferência de títulos de mineração serão aprovados automaticamente em 60 dias, caso a ANM não se manifeste nos processos.
“Seria como permitir uma Mariana sem análise. Isso é um ponto muito grave da legislação proposta. A atividade mineral oferece riscos, não é igual ir à esquina comprar um picolé”, observa a advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental.
O Comitê em Defesa dos Territórios aponta que a aprovação de um novo código como prevê a minuta pode gerar uma enxurrada de autorizações para lavra garimpeira no curto espaço de seis meses, além de viabilizar grandes empreendimentos com uma tramitação mais rápida e sem análise apurada dos impactos.
Atualmente, são mais de 216 mil processos ativos na ANM, a maioria aguardando análise. Desses, 17.466 são para requerimentos de lavra garimpeira, a maior parte no Pará, onde está a Província Mineral do Tapajós, considerada a maior reserva de ouro do país.
Dados do projeto Amazônia Minada mostram que 2.478 pedidos para minerar no país estão em terras indígenas, pelo menos 254 desses requerimentos são para garimpo.
Ao estabelecer a mineração como atividade de utilidade pública, os deputados também propõem que os interesses da mineração sejam determinantes na demarcação de territórios indígenas e criação de unidades de conservação.
“Nos processos de criação de unidades de conservação, de tombamento e de outras demarcações que possam restringir a atividade minerária, deverá ocorrer ampla discussão e participação da sociedade, sendo ouvidos o Ministério de Minas e Energia, a ANM e os titulares de direitos minerários abrangidos por essas áreas”, diz trecho da proposta de hoje da relatora.
E apesar de não tratar diretamente sobre mineração em terras indígenas —outra proposta no Congresso discute o tema (PL 191/2020) —, o texto da relatora pede que seja assegurada a titularidade de requerimentos em áreas de bloqueio, como é caso das terras indígenas, mas deixando em aberto a regulação desses requerimentos.
Tal medida poderá criar uma espécie de reserva entre os mais de 2,4 mil requerimentos que estão sobre terras indígenas. Hoje, dos 500 pedidos para mineração na TI Yanomami, 380 são anteriores a 1992, quando o território foi homologado.
Além disso, a nova proposta pode interferir na demarcação de territórios historicamente ocupados por indígenas e quilombolas, a proposta também pode travar processos de assentamento da reforma agrária.
“Não revogar os títulos em terras indígenas é inconstitucional e coloca interesses da mineração acima de qualquer outro interesse da sociedade”, observou a advogada Juliana de Paula. A jurista destaca que a Constituição já prevê a inexistência de títulos sobre terras indígenas.
Os novos pedidos para mineração de ouro bateram recorde histórico em 2021, revelando que o país vive uma nova corrida do ouro. Só este ano, foram 3.117 pedidos para explorar o minério – no total, são 35,7 mil pedidos válidos na ANM só para essa substância.
Outra mudança considerada significativa é a regra para apresentação dos riscos associados às barragens da mineração. Em Nota Técnica publicada em 22/11/2021, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) alertou que o artigo 39, § 1º, da minuta adia a exigência de informações sobre os riscos das barragens, instrumento para levantamento cadastral e mapeamento georreferenciado das populações vulneráveis.
“Na verdade, é uma investida contra um plano que foi criado a partir de aprendizados ocorridos com dois grandes desastres da mineração”, analisa a pesquisadora Andréa Zhouri, da Associação Brasileira de Antropologia, em manifestação pública da ABA.
O novo código prevê a apresentação completa do plano de barragens praticamente no fim da tramitação do pedido de mineração. Segundo as organizações que militam por maior segurança dessas barragens, sem dados sobre os projetos fica impossível cumprir o artigo 18-A da Lei Nacional de Segurança de Barragens (Lei 14.066/2020), que interdita a “implantação de barragem de mineração cujos estudos de cenários de ruptura identificam a existência de comunidade na Zona de Autossalvamento (ZAS)”.
Indefinição sobre impactos do garimpo
Um dos temas mais sensíveis da mineração no Brasil, o garimpo, que além dos impactos ambientais atinge a saúde da população –pela contaminação com mercúrio e, também, disseminação de doenças como a malária-, segue com indefinições sobre seus reais impactos na minuta apresentada.
O tema esteve presente nas discussões do GT, mas nenhuma alteração foi realizada para estabelecer limites na operação dos garimpos além dos já estabelecidos — pessoas físicas podem requerer 50 hectares e cooperativas até 10 mil hectares na Amazônia Legal.
O novo código mantém as mesmas características da garimpagem como definidas originalmente na lei 7.805/89, que criou o regime de permissão de lavra garimpeira (PLG). Dessa forma, o texto não se manifesta sobre a utilização de balsas e dragas de sucção, das mais simples às mais complexas, ou a atividade de revolvimento de solos com uso de maquinário como pás-carregadeiras, tratores de esteira e escavadeiras hidráulicas para extração de ouro pelas PLGs.
O Ministério Público Federal (MPF) já alertou sobre essa omissão, apontando que “a não adoção, na legislação mais moderna, de critérios objetivos para delineação da atividade de garimpo”, acaba permitindo “enquadrar na ideia de garimpagem atividades que, por sua natureza, aproximam-se da indústria e da empresa”.
O garimpeiro como microempreendedor
Outra proposta do grupo do deputado busca instituir a figura do garimpeiro pessoa jurídica. A proposta é de que o garimpeiro se torne Microempreendedor Individual (MEI), mas sem esclarecer em quais hipóteses esse regime vai ser possível.
“Não fica claro se o garimpeiro será MEI e só ele vai poder explorar aquele PLG ou se o garimpeiro que hoje trabalha para uma pequena mineradora, dessas que operam como garimpo, será MEI”, questiona Jarbas.
Dirceu Santos Frederico Sobrinho, presidente da Associação Nacional do Ouro (Anoro) e defensor da criação da figura do “pequeno minerador” —que realiza garimpo com uso de maquinários— também fez contribuições para o GT. Em uma das audiências realizadas, Sobrinho admitiu que o garimpo não pretende abandonar o uso do mercúrio em curto prazo, pois, segundo ele, a atividade no Brasil não seria possível sem o uso do metal líquido.
Concentração de poderes na agência federal
A autonomia de estados e municípios sobre projetos de mineração também foi colocada à prova na primeira versão da minuta, que transferia todas as competências em relação aos processos minerários à ANM, “sendo dispensados os atos de anuência de Estados e Municípios para a exploração dos recursos minerais”.
Em seu voto nesta quarta-feira, Greyce Elias voltou atrás na proposta e estabeleceu área máxima de 200 hectares para o licenciamento na esfera municipal.
O Comitê dos Territórios Frente à Mineração destaca que ao concentrar os poderes sobre os processos minerários na ANM, a proposta fecha “os principais canais atuais de interlocução e luta das comunidades atingidas e ameaçadas pela mineração”, já que é nas esferas municipais e estaduais que acontecem as principais articulações provocadas por organizações da sociedade civil.
Guias de Utilização
Outro dispositivo polêmico é a possibilidade de início da operação de exploração antes mesmo da concessão minerária, através de Guias de Utilização, que são autorizações provisórias, antes da concessão definitiva, criadas para autorizar explorações em situações específicas.
Com a nova proposta, através da Guia de Utilização, grandes e pequenas mineradoras poderão explorar economicamente suas minas sem que a agência tenha analisado toda a viabilidade do requerimento e dado autorização para o funcionamento integral do projeto. O texto também permite a renovação da Guia por tempo indeterminado até a concessão total.
Os deputados também propõem que empresários possam utilizar os títulos de requerimentos como garantia em operações de crédito, incluindo as autorizações de pesquisa, antes da apresentação dos relatórios que atestam a existência de minério.
“Esse é outro ponto muito frágil, praticamente um cheque em branco concedido antes mesmo da conclusão da fase de pesquisa, que inclusive pode apontar que não existe minério algum naquela área”, destaca a advogada Juliana de Paula.
Ambientalistas e defensores dos povos originários da Amazônia apontam que nenhuma das propostas dos seus segmentos foi incorporada na minuta, e que o arranjo da discussão do novo código em um Grupo de Trabalho da Câmara não é o mais adequado para criação de um novo Código de Mineração.
“Concordamos que o novo Código precisa de atualização, mas é preciso uma maior participação popular. A mineração é um setor impactante na sociedade e deixa marcas profundas. Não podemos aceitar que essa tramitação do GT venha do jeito que foi e vá para votação no plenário sem um debate amplo. É um processo muito viciado”, declarou Jarbas Vieira.
Com informações do site O ECO