O número de pessoas fugindo de guerras, perseguições e conflitos superou a marca de 70 milhões em 2018. Este é o maior nível de deslocamento forçado registrado pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) em suas quase sete décadas de atuação — o organismo internacional foi criado em 1950. Essas pessoas foram forçadas a sair de suas casas para escapar da fome, da mudança climática e da guerra no maior deslocamento humano desde a Segunda Guerra Mundial.
O documentário Human Flow (2h23, 2017) aborda esse tema em uma jornada cinematográfica por 23 países, como Afeganistão, Bangladesh, França, Grécia, Alemanha, Iraque, Israel, Itália, Quênia, México e Peru. Com a direção de Ai Weiwei, cineasta chinês radicado na Alemanha, o filme dá uma poderosa expressão visual a essa imensa migração humana e elucida a escalada da crise de refugiados e seu impacto humano.
Uma das conclusões das mais de duas horas de filme é que a imigração global é um fator decisivo na afirmação de correntes identitárias que ameaçam as democracias na Europa e em outras partes do mundo. O longa testemunha a busca desesperada por segurança, abrigo e justiça: dos campos de refugiados às perigosas travessias oceânicas para as fronteiras de arame farpado; de deslocamento e desilusão para coragem, resistência e adaptação; da atração assombrosa de vidas deixadas para o potencial desconhecido do futuro. Confira o trailer:
No Brasil, essa questão já foi debatida pelo Laboratório Megatendências Globais e Desafios à Democracia, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP), sob a coordenação do cientista político português Álvaro de Vasconcelos, professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, em outubro de 2015. Embora realizado há quatro anos, as conclusões do debate permanecem atuais e indicam que o primeiro desafio do País é construir um sistema justo, transparente e estável para as pessoas em estado vulnerável, como os refugiados e aquelas sujeitas ao tráfico de pessoas e ao trabalho escravo.
Vasconcelos avalia que o nacionalismo identitário é a ideologia das correntes populistas antidemocráticas. A reação a esta crise humanitária, particularmente na Europa, veio comprovar que o populismo identitário é uma das maiores ameaças à democracia nos tempos modernos e que é muito provável a tendência ao seu agravamento. A questão dos refugiados coloca no centro do debate sobre o futuro da democracia o princípio da hospitalidade, que, como definiu Jacques Derrida, consiste na capacidade de receber ‘o outro’ como diferente, mas, essencialmente, igual. Que análise comparativa se pode fazer da reação europeia e brasileira?
“Um mundo cada vez mais diverso é uma megatendência mundial que irá transformar a maioria dos países em autênticas torres de babel, com uma enorme pluralidade de pertences e memórias históricas, culturais e religiosas. Dos fatores da diversidade, destacam-se a emigração global e o envelhecimento demográfico, que se verifica em muitos países, bem como o crescente número de refugiados que fogem da repressão brutal, da fome e das guerras sectárias, como a da Síria.”
Laboratório Megatendências Globais e Desafios à Democracia
Assista ao vídeo do debate neste link
Refugiados no Brasil
No contexto global, o Brasil, segundo dados divulgados pelo Cômite Nacional para os Refugiados (CONARE) na 4º edição do relatório “Refúgio em Números”, reconheceu, apenas em 2018, um total de 1.086 refugiados de diversas nacionalidades. Com isso, o país atinge a marca de 11.231 pessoas reconhecidas como refugiadas pelo Estado brasileiro. Desse total, os sírios representam 36% da população refugiada com registro ativo no Brasil, seguidos dos congoleses, com 15%, e angolanos, com 9%.
O ano de 2018 foi o maior em número de solicitações de reconhecimento de condição de refugiado aqui no Brasil. Isso porque o fluxo venezuelano de deslocamento aumentou exponencialmente. No total, foram mais de 80 mil solicitações no ano passado, sendo 61.681 de venezuelanos. Em segundo lugar está o Haiti, com 7 mil solicitações. Na sequência estão os cubanos (2.749), os chineses (1.450) e os bengaleses (947). Os estados com mais solicitações em 2018 são Roraima (50.770), Amazonas (10.500) e São Paulo (9.977). Para se ter uma ideia do crescimento de solicitações, Roraima recebeu quase 16 mil solicitações em 2017 – um aumento de mais de 300% se comparado com o ano passado.
Discriminação
Além de tentar uma vida em um país estrangeiros, muitos refugiados são vítimas de preconceito aqui no Brasil. Um levantamento realizado por universidades parceiras da ACNUR mostra que 41% dos refugiados vivendo no País já sofreram algum tipo de discriminação. Das vítimas de preconceito e agressões, 73,5% associaram o episódio ao fato de serem estrangeiros. Questões raciais também apareceram como causa da discriminação — em 52% dos casos relatados.
Os números fazem parte do Perfil Socioeconômico dos Refugiados no Brasil, a primeira pesquisa em escala nacional que retrata as condições de vida de pessoas em situação de refúgio no território brasileiro. Para a elaboração do estudo, foram realizadas 487 entrevistas em oito estados — São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais e Amazonas — e no Distrito Federal. Dos refugiados que participaram da pesquisa, 200 afirmaram ter sofrido discriminação. Desse grupo, cinco indicaram que a orientação sexual teria sido o motivo por trás da violência.