
Em seu mais recente artigo publicado no site do jornal El País Brasil, a jornalista Eliane Brum analisou a postura do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) na condução da pandemia do coronavirus no Brasil. Segundo ela, o chefe do executivo brasileiro transformou a população em cobaia de um “experimento de perversão inédito na história”.
“Estamos subjugados a um experimento, como cobaias humanas. A premissa da pesquisa desenvolvida no laboratório de perversão de Bolsonaro é: o que acontece quando, durante uma pandemia, uma população é deixada exposta ao vírus e a maior autoridade do país dá informações falsas, se recusa a adotar as normas sanitárias e também a tomar as medidas que poderiam reduzir a contaminação”, afirma
Segundo ela, o resultado mais conhecido é o de perdas de vidas. Até o momento, o Brasil já registrou mais de 260 mil mortes em decorrência da Covid-19 e o número segue crescendo ao contrário de países como Estados Unidos e Reino Unido – que se equiparavam ao Brasil no desempenho relacionado à Covid-19 nos piores momentos da pandemia.
As taxas diárias registradas no país também são assustadoras e os recordes são superados a cada dia, como na noite da última quarta-feira (3), quando o Brasil registrou a marca de 1.910 óbitos em apenas 24 horas. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apresentados no texto mostram que a média de mortes no mundo caiu 6%, enquanto aqui no Brasil cresce, em média, 11%.
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Ainda no texto, a jornalista afirma que outro efeito das atitudes do presidente tem impacto direto nos laços e dinâmicas sociais, que podem perdurar por décadas, assim como em outros países em que pessoas com o mesmo perfil estão na liderança.
“É [um efeito] menos óbvio: o que descobrimos sobre nós, como sociedade, quando submetidos a essa violência, e o que cada um descobre sobre si quando as escolhas sanitárias, em vez de determinadas pela autoridade de saúde pública, dependem da sua própria decisão”, instigou.
Sintoma ou má fé
Para Eliane, seguir apontando a “incompetência” do presidente no que diz respeito à gestão pública ou de saúde só pode representar duas situações, sendo a primeira um “sintoma” que comprova a efetividade das ações de Bolsonaro.
“Sintoma porque, para uma parte da população, pode ser demasiado assustador aceitar a realidade de que o presidente escolheu disseminar o vírus. A mente encontra um caminho de negação para que a pessoa não colapse. É um processo semelhante ao sequestrado que encontra pontos de empatia com o sequestrador para ser capaz de sobreviver ao horror de estar totalmente a mercê da vontade absoluta de um perverso”, analisou.
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Já a má-fé, apontada a seguir pela escritora, está presente nos grupos que ainda acreditam se beneficiar do presidente no poder e que aguardam o momento exato para lhe darem as costas mantendo seus interesses e a “simpatia” da população. Um deles seria o denominado “mercado”, que aguarda ansiosamente pelas prometidas reformas neoliberais. Outro, o agronegócio, que aposta no prometido “passar da boiada” ambiental, na destruição da Amazônia e na “ampliação das fronteiras agropecuárias”.
“Parte espera que Bolsonaro consiga avançar com mais algumas maldades antes de retirar seu apoio, seja ele à luz do dia ou nas sombras. Só então se escandalizará ao subitamente descobrir a intenção de Bolsonaro de enfraquecer a legislação ambiental e abrir as terras indígenas para exploração predatória. Em algum momento, essas cândidas criaturas do mercado vão retirar seu apoio enojadas, em entrevistas ponderadas e pontuadas por jargões econômicos na imprensa liberal”, comentou.
O recuo de João Dória
Outro grupo de interesse que tem estado ao lado de Bolsonaro há anos e segue perseguindo interesses financeiros a despeito da vida de milhares de pessoas – inclusive seus fiéis – são os líderes de igrejas pentecostais e neopentecostais. Os nominados por Brum de “pastores do mercado” seguem mantendo suas igrejas abertas e apostando nas aglomerações para não correrem o risco de ver suas receitas caírem.
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Também citado por ela, o governador de São Paulo, João Dória (PSDB-SP), recuou do posicionamento pró-isolamento social que lhe deu visibilidade nacional para ceder à pressão das igrejas. Mesmo com o sistema hospitalar em iminente colapso, Dória manteve os cultos e reuniões religiosas como “atividades essenciais” em manobra para agradar os pastores que vinham reclamando de sua gestão.
“O fervor pela ciência demonstrado por Doria, em nome do qual consolidou-se como o principal opositor de Bolsonaro no primeiro ano de pandemia, foi substituído pelo novo mote anunciado por ele na segunda-feira: “esperança, fé e oração”. Diante da pressão dos vendilhões dos templos e sua ameaça de retirar apoio na disputa presidencial, rifa-se mais uma vez a vida. E segue aquilo que consideram prioritário: a eleição presidencial de 2022”, apontou.
Elites políticas
Ao analisar a atuação do Congresso Nacional em meio ao caos, Eliane cita o papel do legislativo em 2020 ao aprovar o auxílio emergencial de R$ 600 – não de R$ 200 como queria Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes – e barrar outros desmandos do presidente.
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Porém, um ano depois de uma luta incessante contra o negacionismo e a visível “política de morte” implementada pelo Governo Federal, o Centrão segue priorizando projetos como o da “impunidade parlamentar” e preocupado apenas com seus bolsos.
Bolsonaro nos coloca como cúmplices
Outra estratégia do presidente apontada pela jornalista é a individualização das responsabilidades. Segundo ela, quando ele afirma que não irá tomar vacina por se tratar de uma questão pessoal, sabe que um plano de imunização só funcionará se este for um pacto coletivo, assim como qualquer decisão tomada diante uma pandemia.
Ao deslocar a responsabilidade para o indivíduo, Bolsonaro está perversamente nos tornando cúmplices de seu projeto de morte. Quando ele invoca o direito individual de não usar máscara e de não tomar vacina, ele está maliciosamente dizendo também o seguinte: se é cada um que decide e faz o que quer e você está reclamando de mim, por que você não decide se proteger e proteger os outros? Simples assim, ele poderia dizer. Ou “talquei?” É diabólico, porque ele faz isso parecer trivial, como se fosse possível numa pandemia que as decisões sanitárias dependam da escolha individual.
“É muito difícil lutar contra o governo federal, que tem a máquina do Estado na mão e a capacidade de amplificar suas orientações a toda a população. É imensamente mais difícil lutar contra um presidente da República em meio a uma crise sanitária. Em vez de seguirmos normas federais que protegem a todos os brasileiros e especialmente os mais vulneráveis, normas determinadas pelo Estado, fomos submetidos a ter que tomar nossas próprias decisões sanitárias e, ao mesmo tempo, sermos atropelados pelas dos outros”, explica.
Mudar ou seguir rumo ao matadouro
“O que essa sociedade fraca, corrompida, individualista e pouco disposta a se olhar no espelho será capaz de criar se não for capaz de se insurgir contra mortes que seriam evitáveis?”
Com esse questionamento, a escritora e repórter também chama a sociedade a tomar ações mais concretas para dar fim ao projeto bolsonarista de extermínio da população, provado em suas falas diárias como a que faz hoje chamando as manifestações de lamento pelas milhares de mortes ocorridas ontem de “mimimi”.
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Eliane vai além e relembra um texto escrito para o mesmo jornal em que levantou a questão: “como um povo acostumado a morrer (ou acostumado a normalizar a morte dos outros) será capaz de barrar seu próprio genocídio?” E responde: “Nossa única chance é fazer o que não sabemos, ser melhores do que somos, e obrigar o Congresso a cumprir a Constituição e fazer o impeachment. E, lá fora, pressionar os organismos internacionais a responsabilizar Bolsonaro por seus crimes.”
“A cada dia cada um precisa se somar a todos os outros para esse projeto comum. E, talvez, ainda possamos nos descobrir capazes de nos tornarmos “nós”, o que significa ser capaz de fazer comunidade. A primeira pergunta da manhã deve ser: o que faremos hoje para impedir Bolsonaro de seguir nos matando? E a última pergunta deve ser: o que fizemos hoje para impedir Bolsonaro de seguir nos matando?”, propõe.
Leia o texto de Eliane Brum na íntegra no site do El País: A covid-19 está sob o controle de Bolsonaro