A princesa Isabel assinou a Lei Áurea e pôs fim à escravização de pessoas negras no Brasil no dia é 13 de maio de 1988. A data, no entanto, não é comemorada pelo movimento negro. A razão é o tratamento dispensado aos que se tornaram ex-escravizados no país a partir do dia seguinte à abolição.
Depois de comemorar a conquista da liberdade por meio da luta, coube ao negro o desemprego, a fome, a morte, os presídios e as ruas. Mesmo depois de 133 anos depois da abolição da escravatura, o dia seguinte, 14 de maio, é o “mais longo” da história da população negra brasileira e dura até os dias de hoje.
Educação transformar a realidade da comunidade negra
Para a secretária nacional da Negritude do Partido Socialista Brasileiro (PSB), Valneide Nascimento, a educação deve ser agente transformador do atual cenário em que os negros brasileiros se encontram e aliada potente na luta antirracista. Em entrevista exclusiva ao Socialismo Criativo a dirigente destaca as várias faces do racismo no Brasil.
“Combater as várias ramificações do racismo perpassa pela educação não bancária, que propunha Paulo Freire. Segundo José do Carmo de Araújo existem três formas de poder: o financeiro, o político e o do conhecimento, sendo o terceiro possível mecanismo libertador das opressões. Seguimos em busca de conscientizar e educar nossa população negra para tomar o protagonismo de sua história. O conhecimento como política pública é a ferramenta mais próxima na nossa real abolição”.
Valneide Nascimento
Valneide ressalta as teses propositivas da Autorreforma do PSB, que vêm sendo elaboradas a partir do diálogo entre a militância, os dirigentes e os parlamentares socialistas, sobre a importância da luta antirracista na abordagem do documento. “Precisamos tratar [de temas] como a inclusão das comunidades tradicionais e as raízes dos problemas a serem superados”, analisa.
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Reflexão e luta contra o racismo estrutural
A integrante da direção da Juventude Socialista Brasileira (JSB) Juliene Silva, que também falou com o Socialismo Criativo, comentou a data e destacou protagonistas na luta abolicionista.
“Primeiramente, acredito que a data de 13 de maio não deve ser romantizada. Não se trata de uma mulher branca dando liberdade aos negros, mas da conquista da alforria após muita luta e sangue de grandes figuras abolicionistas como Tereza de Benghela, Dandara e Zumbi [dos Palmares]. Em segundo lugar, creio que é preciso compreender o ’13 de maio’ como um momento de reflexão e luta contra o racismo estrutural que mantém, nós negros ainda marginalizados socialmente”.
Juliene Silva
Juliene também falou sobre a situação das empregadas domésticas, que são na maioria negras, provocado pela pandemia da Covid-19. O cenário está diretamente relacionado ao pensamento escravocrata ainda existente na sociedade.
“O trabalho doméstico, por si só, já tem origem escravocrata e a pandemia apenas deixou mais explícito a lógica por trás do serviço domestico, que é a de ter a sua escrava particular, que lava, passa, pode acordar super cedo, ser privada de criar os próprios filhos e de preservar sua saúde podendo realizar quarentena para cuidar do patrão. A ideia de ter alguém para limpar sua sujeira, inclusive já foi abolida em muitos países, porque se entende que é um processo de marginalização, exploração e escravização de pessoas em situação de vulnerabilidade”.
Políticas públicas e justiça social para a população negra
A Autorreforma do PSB destaca que o Brasil foi o último país a abolir oficialmente a escravidão e é o primeiro em população afrodescendente fora do continente africano. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 54% dos brasileiros são negros ou pardos, ficando atrás, em quantidade, somente da população da Nigéria. A despeito dessa constatação demográfica, o Brasil ainda está longe de ser uma democracia racial.
Os dados do Mapa da Violência de 2019 e uma série de estudos da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), que analisa as taxas de mortalidade dos municípios brasileiros, demonstram que ter a pele escura, no Brasil, é sinônimo de redução da expectativa de vida, pois 75% das vítimas de homicídio eram pessoas negras.
“A relação da população negra com a violência se dá por meio dos estereótipos criados sobre o lugar onde esses indivíduos vivem e suas condições socioeconômicas.”
Autorreforma do PSB
Ao fazer um recorte de gênero e raça, na estrutura do sistema tributário vigente, percebe-se que, proporcionalmente à renda, são as mulheres negras pobres que mais pagam impostos e as que recebem os menores salários.
O PSB é solidário e copartícipe – por meio de suas instâncias partidárias, e que tem na Negritude Socialista seu principal porta-voz – das demandas dos movimentos negros que não se restringem à questão racial, mas também se relacionam com problemas sociais, econômicos e culturais, que incidem sobre a população negra.
Ações afirmativas para população negra
Os socialistas entendem que as ações afirmativas e compensatórias precisam ser aprimoradas para garantir a permanência da população negra nas instituições públicas de ensino. O PSB defende que isso seja feito por meio de programas de acompanhamento social e apoio à alimentação, moradia, acesso a livros e transporte, para que a lei de cotas seja efetiva.
“A falta de representatividade negra, nos espaços de poder, é um fator que contribui fortemente para manter essa população na base da pirâmide social, com os piores postos de trabalho, a média salarial mais baixa, e vivendo sob as condições mais vulneráveis no que se refere à saúde, segurança e educação.”
Autorreforma do PSB
O PSB ressalta a necessidade do aumento da representação dos negros e negras nos poderes executivo, legislativo e judiciário, e, nos demais espaços de poder, deve superar a afirmação meramente casual e se converter em ações concretas.
O partido destaca a necessidade de ajustes para a plena aplicação das leis que expressam o espírito compensatório, como o Estatuto da Igualdade Racial, que determina o ensino da história afro-brasileira nas escolas, o decreto que regulamenta o reconhecimento e a demarcação de terras ocupadas por descendentes de quilombolas, e a proibição de diferenças de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão por motivo de raça.
Os socialistas também advogam pela correta observação da Lei Complementar 150, que regula o emprego doméstico e o fim dos autos de resistência, no qual a morte de um suspeito é justificada pela sua resistência ao ser preso, sem que a necessária autópsia seja feita no caso de morte envolvendo agentes de Estado.
Efeitos da escravidão perduram entre pessoas negras
Os reflexos da escravidão imposta à população negra, que foi retirada à força do continente africano e submetida a condições sub-humanas, perduram, e provocam marcas profundas na atualidade.
E essa condição se dá porque o governo brasileiro, seja à época da abolição, ou a república, instaurada no país em 1889, não promoveu medidas para reparar os mais de três séculos da perpetuação de crimes cometidos contra a população negra no Brasil, tampouco para ajudar esse grupo a conseguir se inserir na sociedade.
A população negra se viu jogada à própria sorte justamente pelo racismo, ligado, de forma subliminar, à condição historicamente subalterna na sociedade. Sua existência passou a ser criminalizada em diversos aspectos, o que motivou esse conjunto de indivíduos com a pele negra a migrar para regiões periféricas, no Rio de Janeiro.
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Desigualdade entre pessoas brancas e negras
A exclusão sistêmica da população negra nos primeiros anos pós-escravidão teve consequências definitivas para a estrutura social do Brasil, marcada por aspectos como a desigualdade social e o racismo estrutural. Dados comprovam que a população negra é marcada por processo histórico de exclusão social, o que reforça a tese de que a abolição foi meramente simbólica.
Pretos e pardos equivalem a 56% da população brasileira, composta por 207 milhões de pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entretanto, o que se vê é a disparidade de condições entre as populações preta e branca. Ainda, mais dados mostram como a população negra está mais suscetível a condições de vulnerabilidade social em decorrência da omissão histórica do Estado.
Os dados do Mapa da Violência de 2019 e uma série de estudos da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), que analisa as taxas de mortalidade dos municípios brasileiros, demonstram que ter a pele escura, no Brasil, é sinônimo de redução da expectativa de vida, pois 75% das vítimas de homicídio eram pessoas negras. E conforme o Atlas da Violência 2017, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a população negra tem 23,5% chances a mais de morrer do que grupos de qualquer outra etnia.
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Alta taxa de analfabetismo entre pessoas negras
Quando se fala em políticas para redução da desigualdade entre negros e brancos, como o uso de cotas raciais e demais políticas afirmativas, uma parcela social recorre à equivocada premissa de que a população negra quer privilégios. Porém, indicadores como a taxa de analfabetismo quebram esse tipo de argumentação. Segundo dados do IBGE, 11,2% da população preta são analfabetos e 11,1% de pardos o são. Esse mesmo indicador é de 5% entre brancos.
Segundo pesquisa divulgada em 2015 pelo IBGE, 12,8% dos jovens negros estavam na universidade, isso é mais do que o dobro em comparação com dez anos antes, quando havia 5,5% desse mesmo grupo no ensino superior. Ainda assim, essa quantidade é ínfima se comparada com a população branca, que tem 26,5% de jovens na universidade.
Salários mais baixos e poucos cargos de liderança
Outro aspecto que chama a atenção diz respeito a cargos de chefia em organizações diversas. Pesquisa feita pelo IBGE, que levou em consideração mais de 500 empresas, apontou que 10% dos cargos de chefia são ocupados por pretos e pardos.
Mesmo que pessoas negras e brancas estejam em pé de igualdade no quesito formação acadêmica, os salários têm diferenças: negros recebem o equivalente a 85% quando têm ensino médio completo e 65% quando se fala em ensino superior. Nos casos de mulheres negras, esse patamar é ainda mais gritante: os salários delas são, em média, 59% menores em comparação com os de homens brancos.
Negros representam o maior número no sistema prisional
No quesito segurança pública, segundo a edição divulgada em 2017 do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), o Brasil tem 727 mil detentos, o que torna o país o terceiro país que mais encarcera pessoas no mundo. Dentro desse cenário, ainda de acordo com o Infopen, 64% da população carcerária brasileira é composta por pretos e pardos – entre as mulheres, esse indicador sobe a 68%.