A Shein foi criada na China em 2008 com o nome “ZZKKO” e vendia apenas vestidos de noivas. A pandemia da covid-19 impulsionou o crescimento explosivo e fez da plataforma uma das poucas marcas de consumo chinesas a ganhar aclamação global. A marca chinesa ganhou as manchetes recentemente por ultrapassar a Amazon em downloads de aplicativos nos Estados Unidos e por criar um culto de seguidores para suas roupas fast fashion vendidas em todo o mundo.
Somente no primeiro semestre deste ano, o aplicativo de Shein acumulou mais de 81 milhões de downloads em todo o mundo. Há um ano, em agosto de 2020, a Shein tinha uma avaliação de US$ 15 bilhões, de acordo com a PitchBook. Neste verão, esse valor dobrou para até US$ 30 bilhões, com receita anual chegando a US$ 10 bilhões, informou a Bloomberg em junho, citando fontes não identificadas.
A Shein se posiciona como uma empresa global, com ênfase na distribuição: envia para mais de 220 países ou territórios e tem preocupado marcas consolidadas como Zara e H&M em seu próprio jogo. A marca chinesa produz os itens mais rapidamente e proporciona uma experiência digital com os clientes muito interessante.
A capacidade da Shein de atrair usuários para sua plataforma é um dos principais ingredientes para o sucesso, junto com o processo de produção hiperrápido, preços de base de pechincha e ofertas de produtos baseados em dados.
A Shein é o reflexo da ascensão da China como potência, resultado do conceito de “prosperidade comum” que o país vem seguindo. Esse fenômeno chinês levou à criação de diversas narrativas sobre as características do modelo de desenvolvimento do país asiático e seu papel na economia global. Para o professor Elias Jabbour, o Partido Comunista Chinês (PCCh) tem um papel fundamental para realização desse “milagre” do crescimento chinês nos últimos 40 anos.
“Quando falam sobre o desenvolvimento econômico da China, querem ‘esvaziar’ o conteúdo político dessa experiência, como se fosse um cenário de crescimento econômico sem ligação ao processo político. As pessoas falam que qualquer país que fizesse as escolhas que a China fez, teria esse crescimento e não é bem assim. A China fez uma revolução que tinha por objetivo ter o direito que o capitalismo negou a ela de buscar e planejar seu próprio caminho de desenvolvimento. O Partido Comunista acabou sendo cumpridor das tarefas históricas [que eram da competência] das burguesias nacionais. O caminho do desenvolvimento chinês passa por uma decisão política de adentrar ao processo de globalização e tirar o máximo proveito disso para sua estratégia nacional”. Elias Jabbour
Jabbour pesquisa sobre a China há 25 anos e é especialista no processo de desenvolvimento recente da República Popular da China. É graduado, mestre e doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor adjunto da Faculdade e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e foi o convidado desta semana do Socialismo Criativo Entrevista – Moda e Política.
As entrevistas são conduzidas pela secretária de redação do site Socialismo Criativo, Iara Vidal. A jornalista é pesquisadora independente dos encontros da moda com a política e representa o movimento Fashion Revolution em Brasília. Ela é modativista para que a produção seja justa, ética e consciente. E que preze pelas pessoas e pela natureza acima do lucro.
Nesta quinta-feira (19), o tema foi “A Shein, maior startup de moda do mundo, e o milagre do crescimento chinês”.
Influências soviéticas no socialismo chinês
Durante a live, Jabbour comentou sobre a contribuição soviética para o socialismo com características chinesas e a transição entre o capitalismo e o socialismo em âmbito global.
Essa transição começa com a Revolução Russa de 1917. A Rússia, além de marcar um novo modo de produção, uma nova organização da sociedade, ela também inaugura os novos marcos institucionais que capacitam o ser humano a ser senhor do seu destino. Então a Revolução Russa foi a ‘luz no fim do túnel’ que os chineses viram para o fim de um século de humilhações. Do ponto de vista político, a vitória russa na segunda guerra mundial foi fundamental para a Revolução Chinesa”. Elias Jabbour
Para Iara Vidal, é importante ressaltar que o socialismo não é um modelo rígido e hegemônico. “As pessoas acham que tudo tem que vir pronto. É como se o socialismo fosse inventado e tivesse uma ‘bíblia’ a ser seguida. A dinâmica do socialismo é local, histórico e material”, pontuou.
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Transparência na China
Iara Vidal trouxe ao bate papo com Jabbour o fato de a China ser sempre alvo de mentiras e com a Shein isso não é diferente. Um dos alvos de críticas no ocidente diz respeito à transparência. O site da marca não faz menção à história ou mesmo onde está sediada, apenas informa se tratar de uma empresa “internacional”. Nos últimos meses, isso levou a algumas sugestões de que o varejista minimiza deliberadamente suas raízes chinesas em meio a tendências crescentes e polêmica política.
Elias Jabbour avaliou essas críticas como fruto da luta ideológica, política e tecnológica entre China e EUA.
“A indústria têxtil é muito ‘carimbada’ por ser uma indústria de baixa intensidade tecnológica, afeita à condições insalubres de trabalho. A China ainda tem problemas nesse tipo de indústria. A indústria têxtil é importante na geração de emprego, mas hoje esse tipo de indústria não é o dínamo da economia chinesa. As críticas estão permeadas por essa luta ideológica, política e tecnológica entre China e EUA”. Elias Jabbour
Jabbour ainda ressaltou a falta de transparência nas indústrias estadunidenses e europeias.
“O que é a companhia estadunidense ou europeia falar de ‘transparência’? A Alstom montou um esquema de corrupção na expansão do metrô de São Paulo de U$ 500 milhões de dólares e ninguém fala sobre isso. Isso é de uma hipocrisia. A hipocrisia é que manda hoje no mundo”, completou.
Trabalho escravo na China?
Iara Vidal contou que quando fez a divulgação da entrevista, questionaram se a Shein usa trabalho escravo. A pessoa que questionou, admitiu que sequer lembrava de ter lido sobre o tema, mas o fato foi incorporado ao inconsciente coletivo, que dá como certo a escravidão na China. Jabbour esclareceu que se isso fosse realidade, a China não chegaria à ascensão econômica a qual alcançou.
“A questão do trabalho escravo chega a ser uma piada de mal gosto, pois o chamado ‘trabalho escravo’ ou ‘trabalho análogo à escravidão’ é incapaz de gerar desenvolvimento econômico nos termos que a China alcançou. É impossível um país movido por escravidão ser capaz de chegar onde a China chegou. Peço que as pessoas acompanhem o World Wige Report da Organização Internacional do Trabalho. Entre 2008 e 2017, a China teve um aumento salarial médio de 280%. A China está crescendo salários acima da produtividade de trabalho. Então esse é um dado fundamental para se desfazer o mito do trabalho escravo na China”.
Elias Jabbour
Desde os anos 2000, a China tem operado mudanças institucionais que são movidas por intenções governamentais, mas também por uma classe trabalhadora muito combativa no sentido da regulação do trabalho.
“Os chineses conseguiram transformar a legislação trabalhista, algo que era para proteger o trabalho, em instrumento para alargar o mercado interno. Ou seja, as pessoas estão ganhando muito melhor do que há 10 anos atrás. Hoje, o único lugar do mundo que existe valorização do trabalho é na China”, declarou.
Economia do projetamento
A China é a maior exportadora mundial de roupas, com valor cotado em US$ 142 bilhões. E além de produtora de peças, vem se transformando também em um centro de designer. Com base na economia criativa, ação que agrega valor ao que está sendo produzido, a economia chinesa está se sofisticando. Essa sofisticação é parte de um processo mais amplo, que vai de encontro à economia do projetamento, que é fundamentada no consumo racional e consciente para o desenvolvimento dos países.
Jabbour recordou que iniciou a pesquisa sobre a China motivado pelo interesse em descobrir se o socialismo, sob o ponto de vista econômico, era possível de ser aplicado. Desde 1996 ele escreve sobre o tema. Àquela época, a experiência soviética já havia chegado ao fim, mas o país asiático, a despeito de todas as contradições, persistiu no modo de produção socialista.
A partir do pensamento de Ignácio Rangel, descreve o professor, ele constatou que, na China, o desenvolvimento ocorria fora do que as teorias econômicas previam e havia novos elementos. Ele cita que em 2008, em decorrência da crise financeira, o gigante comunista lançou um pacote de US$ 690 bilhões de investimento. Essas medidas foram executadas por 96 grandes conglomerados empresariais estatais ー cada um deles do porte da Petrobras ー com a participação de 30 bancos estatais de desenvolvimento. A partir daí Jabbour começou a estudar novamente as políticas industriais chinesas do século 21.
Na pesquisa, o geógrafo constatou que, em 2006, a China lançou um ambicioso programa de marcas próprias que marcou o desacoplamento tecnológico dos EUA e do Japão e o surgimento de tecnologias de ponta como o 5G, a Inteligência Artificial e o Big Data.
“Eu percebi que a China, ao pegar essas plataformas tecnológicas novas a partir das suas estatais, passou a aplicar isso tudo à economia real e a partir disso elevou-se a capacidade de planificar a economia.”
Elias Jabbour
Moda chinesa e o Meio Ambiente
Usualmente a cadeia de suprimentos de moda é associada a um impacto socioambiental negativo. Globalmente, a indústria da moda é responsável por 10% das emissões de CO², com previsão de alcançar 25% até 2050. Este segmento ainda se utiliza de muitos recursos não-renováveis, produtos químicos e pesticidas, além do impacto de microplástico dos tecidos sintéticos. Sendo o maior produtor de roupas do mundo, a China também contribui nesse cenário.
Para mitigar esses efeitos e danos ambientais, Jabbor acredita que a China eleve suas técnicas de produção de moda, diminuindo assim, o impacto de sua produção no Meio Ambiente.
“Acredito que a China consiga planificar a relação entre o homem e a natureza. O pais planeja chegar a emissão zero de carbono em 2060. Hoje, já é o pais que investe em tecnologias de energia verde e renováveis mais que EUA e Europa juntos porque eles tem um sistema político que privilegia encaminhamentos para soluções ambientais. A China já tem empresas que tem condições de entregar para o mundo as tecnologias para enfrentar as graves crises ambientais que o mundo vem enfrentando. As grandes soluções para a questão ambiental estão sendo gestadas por lá”. Elias Jabbour