No Líbano, uma multidão sendo alvo de disparos precisos, que vêm do alto, e que quase sempre acertam nas cabeças. Pânico, correria e gritos de desespero.
Em meio à multidão-alvo, centenas de protetores do grupo, armados de fuzis e lança-foguetes, disparam contra as fachadas de edifícios. As cenas assustam e parecem de um filme, mas foram registradas na vida real na quinta-feira (14), em Beirute, capital do Líbano.
Para quem tem memórias de conflitos internacionais das últimas décadas, a primeira coisa que vem à cabeça é a Guerra Civil que devastou a pequena nação do Oriente Médio. De 1975 a 1990, facções com as mais variadas ideologias, de diferentes espectros religiosos e alinhadas a diferentes potências regionais e mundiais transformaram o Líbano num inferno. E o problema é que os ingredientes do massacre recente, em muito, lembram os que deram início ao grande conflito deflagrado há 46 anos.
A Revista Fórum foi ouvir Assad Frangieh, médico brasileiro e membro ativo da comunidade libanesa, que viveu por muitos anos lá e que, desde então, mantém fortes laços com a vida política da nação árabe, para entender o que de fato levou à situação de tensão extrema e de conflito iminente que resultou no massacre de Al-Tayouneh, em Beirute, no Líbano, quando franco-atiradores mataram seis manifestantes simpatizantes do Hezbollah e do Movimento Amal.
“Isso tudo tem início com o processo que investiga a explosão no porto de Beirute, em 4 de agosto de 2020. Um primeiro juiz foi nomeado para cuidar do caso, mas acabou sendo afastado sob a acusação de ser parcial. Foi nomeado, então, o atual juiz da ação, Tarek Bitar, que passou a fazer convocações viciadas. Ele tem chamado apenas políticos e ministros aliados do Hezbollah e do Movimento Amal, passando por cima da imunidade dessas autoridades, e não os chama como testemunhas. Eles são arrolados como acusados”, explica inicialmente Frangieh.
De fato, tanto a imprensa libanesa como a internacional vêm reportando há algum tempo que Tarek Bitar instrumentalizou politicamente o caso da explosão no porto de Beirute e, a partir da ação que conduz, tem promovido uma perseguição aos setores ligados ao Hezbollah e ao Movimento Amal, de viés xiita. As decisões do magistrado frente ao caso adotam, frequentemente, dois pesos e duas medidas.
“O juiz Tarek Bitar também não segue uma linha lógica na sua condução no caso. Não há uma transparência jurídica em suas decisões. Ele não investigou, por exemplo, como se deu a entrada das 2.750 toneladas de nitrato de amônio no porto de Beirute, onde ficaram estocadas, provocando a gigantesca explosão do ano passado. Também não chama a atenção do juiz o fato de ter sido encontrado mais nitrato de amônio, cerca de 20 toneladas, num local no Vale do Beqaa, uma região que não está sob influência do Hezbollah”, argumenta.
O descontentamento de grandes frações da sociedade libanesa com a condução dada pelo juiz Tarek Bitar culminou com a convocação da manifestação da última quinta (14), endossada e patrocinada pelo Hezbollah e pelo Amal. Esses grupos políticos, naturalmente, atribuem a seus inimigos as ações de Tarek Bitar, que agiria em nome dos interesses de grupos como as Falanges Libanesas e as Forças Libanesas, ambas compostas por cristão maronitas, que representam a direita e a extrema direita, respectivamente, no espectro político local. Como se assumissem os interesses no caso do processo que investiga a explosão no porto de Beirute, as duas facções ameaçaram “reagir” às manifestações que marchariam até o Palácio da Justiça, que fica num bairro majoritariamente habitado pelo grupo não islâmico.
“Quem conhece Beirute sabe que, para os manifestantes fazerem aquela rota, indo até o Palácio da Justiça, é necessário atravessar o bairro de Al-Tayouneh, um reduto conservador, de direita, local de intensos confrontos durante a Guerra Civil Libanesa.”, conta o médico ligado à política libanesa.
Os líderes do Hezbollah e do Movimento Amal prometeram não recuar e não permitir que interesses de outras nações, que refletem no ambiente doméstico, tomem conta das investigações sobre a explosão do ano passado. Frangieh explica que as relações e atitudes do magistrado, de fato, levantam suspeitas sobre sua imparcialidade.
“Os líderes do Hezbollah e do Amal garantem que não permitirão ingerência estrangeira nas investigações da explosão no porto de Beirute. No entanto, o juiz Tarek Bitar reuniu-se recentemente com a embaixadora dos EUA no Líbano e vem se reunindo com familiares de vítimas, além de soltar informações sobre o processo nas redes sociais”, disse.
Diante da tensão e do desencadear dos fatos da quinta (14), fica difícil descartar a participação da extrema direita de origem cristã maronita no ataque a tiros contra a multidão, já que o grupo mostrou-se contrariado desde o início com o protesto e ameaçou reagir, além de os fatos terem ocorrido em territórios ocupados por eles.
O fato, mais precisamente, é que parece muito claro para todos os setores da sociedade libanesa e da comunidade internacional que a ordem para a realização do massacre partiu de dois grupos aliados: as Falanges Libanesas, outrora uma milícia cristã anti-islâmica que hoje forma um partido político dos maronitas, liderado por Sami Gemayel, e pelas Forças Libanesas, controladoras por Samir Geagea, o mais notório líder da extrema direita cristã do Líbano, liderança de longa data, que esteve implicado nos ataques ao ônibus de assentados palestinos, em 1975, que serviu de estopim para o início da Guerra Civil Libanesa.
“Todos os grupos e setores correram para apontar todos os dedos para Samir Geagea, o líder de extrema direita das Forças Libanesas, culpando-o pelo ataque em Al- Tayouneh. Curioso que Geagea não nega, nem confirma, mas sim fica tentando dizer que a culpa foi da multidão, alinhada ao Hezbollah, que foi provocar e realizar a manifestação”, contextualiza.
Ao ser questionado sobre a possibilidade de uma nova guerra, já que a anterior teve um início em circunstâncias relativamente parecidas, Frangieh afirma não crer.
“A situação nos faz lembrar, de fato, o início da Guerra Civil do Líbano, em 1975, que também começou com uma provocação. Naquele caso, as provocações ficaram em torno de palestinos e falangistas (cristãos radicais), que serviu de faísca para a guerra, após a ocorrência de um massacre, com assentados palestinos que viajavam num ônibus. Hoje, acho extremamente difícil que algo na mesma dimensão ocorra, já que o alinhamento político e o cenário não são iguais. Há maioria cristã a favor dos xiitas, há maioria de sunitas a favor dos xiitas, enfim… É algo diferente”, opinou.
O membro da comunidade libanesa explicou ainda como o cenário político do pequeno país árabe é complexo e cheio de nuances.
“No Brasil, nós temos em torno de 33 ou 34 partidos políticos, e já achamos muito. No Líbano, que tem 5 milhões de habitantes no máximo e 10 mil km², ou seja, 200km por 100km, há 98 partidos políticos e movimentos políticos reconhecidos… Há as personagens religiosas, ainda. Do lado dos sunitas, há os muftis, que seriam as autoridades mais importantes, enquanto do lado dos xiitas você tem os imãs e do lado cristão maronita há o patriarca, que apoia o Samir Geagea, inclusive em relação aos discursos diários que ele faz. Numa situação como a de agora, esses líderes religiosos estão em posições muito delicadas, porque há uma unificação muito mais forte no campo xiita, há ainda uma certa divisão, mas com predominância no campo sunita do Sadd Hariri, e há ainda o campo maronita, dos cristãos, que sempre estão mais divididos e em facções, as mais radicais ao redor do Samir Geagea e da Falange, ou em facções mais moderadas, aglutinados em torno do Gebran Bassil, que é genro do presidente (Michel Aoun), ou do Suleiman Frangieh, do Movimento Marada”, concluiu.