por Charles Siqueira em 06/12/2018.
No mês que fechou celebramos mais um Dia da Consciência Negra: além do feriado em grandes capitais do Brasil, há algo a se comemorar?
No ano em que se completa 130 anos da Abolição da Escravatura no Brasil, poderia aqui tratar da enorme dívida que temos com a dezena de milhões de negros trazidos à força para esse país e que moldaram a nossa formação cultural ao longo de séculos, num pais ainda longe de se considerar uma pátria segura para seus descendentes (quantos de nós?). Mas no Brasil que não se declara racista, não enxerga a sua própria digital na condição desumana a que submetemos uma maioria populacional e agora está legitimado politicamente a dizer que denunciar aquela desigualdade histórica é “vitimismo”, não perderei tempo buscando dados para contrapor a preconceituosos aquilo que não se deseja enxergar. Ao invés de lamentar o débito, prefiro tratar do investimento. Contra fragilidade, ofereço potência e trago hoje uma personagem – que conheci recentemente mapeando iniciativas nacionais para o British Council – cuja iniciativa prospera velozmente e ganha corpo crítico, volume e força no Brasil da Economia Criativa para Inclusão Social.
Conheçam um dos maiores exemplos de iniciativas afirmativas e solidárias do poder negro como cultura, diversidade e economia: com vocês, a FEIRA PRETA e seu AFROLAB.
“Meu nome é Adriana Barbosa e coordeno o Instituto Feira Preta, um negócio social que comecei a empreender há 17 anos na cidade de São Paulo, junto com uma amiga. A gente vinha de um período de falta de grana, de ‘sevirologia’ e começamos montando um brechó de troca de coisas entre as pessoas. Em 2002, a cidade de São Paulo tinha uma efervescência de música negra como na Vila Madalena, onde nos atraía uma forte cena de Black Music.A gente ia pra lá e falava: ‘Caramba! A gente tá aqui produzindo e consumindo; mas não é detentora dessa circulação monetária!’. Ali tinha DJs, Hostess, Técnicos de bandas. Negros consumindo e trabalhando, mas no final da noite só homens brancos contavam a grana. E nos perguntávamos: ‘Porque a gente também não é proprietário desse dinheiro? Como nos ficávamos esperando o ônibus pra voltar pra casa, víamos a sangria, o fechamento dos caixas e aquilo me deixava intrigada.
Aí numa daquelas feiras de rua onde fazíamos as trocas teve um arrastão, perdemos muito e ao repensar a retomada vimos que não valia mais ficar nessa de segurar a onda, ter apenas dinheiro pra procurar emprego no dia seguinte: a gente queria ter mais qualidade de vida! Foi dai que surgiu a FEIRA PRETA, em 2002, na Praça Benedito Calixto, estabelecendo um espaço para a produção da população negra, em todas as linguagens artísticas, de produtos ou serviços, mas na perspectiva de ser proprietário dessa história. Do ponto de vista da criação, mas também do consumo e das finanças por trás dela. A gente criou uma feira onde pudesse colocar o negro não mais como intermediário: a gente mesmo produzia, fazia circular o produto e recebia o dinheiro da nossa criatividade e do esforço produtivo.
A Feira cresceu e virou a maior feira negra da América Latina. Mas o começo era só dificuldade; já no segundo ano tivemos uma grande mudança. Fazíamos inicialmente numa área nobre de São Paulo – o bairro de Pinheiros – mas logo veio um abaixo-assinado e a gente teve que peregrinar por vários espaços até chegar no Anhembi, um dos maiores espaços de exposição da capital. Quando você chega num lugar como aquele, com contrato, etc, há uma série de condicionantes para comercialização. A lógica de capital aplicada ali é bem distinta da dinâmica de uma feira de rua, especialmente quanto à obrigatoriedade de emissão de notas fiscais e a maior parte dos nossos expositores é do universo informal. Então tivemos que seguir na direção de instituir todo um processo de formação daqueles empreendedores para estarem dentro daqueles espaços. Naturalmente a FEIRA PRETA seguiu nesse processo de articular quatro pilares: a criação, a produção, a distribuição e o consumo. Então, para responder àquela questão surgiu o AFROLAB, em 2011.
A FEIRA PRETA começou com duas mulheres pretas tentando sobreviver e dar conta da vida. Eu venho de uma família matriarcal, conduzida por mulheres negras: minha bisavó, minha avó, minha mãe, eu e minha filha. Só mulheres! Toda vez que faltava grana na minha casa a minha bisavó – que era muito inventiva – criava das suas: fazia coxinhas, depois passou a cozinhar, vender marmitex. Depois abriu nossa casa e a transformou num restaurante, envolvendo toda a família nesse processo de produção. Então, para mim, a mulher negra empreende há mais de 130 anos, pré-Abolição. Uma coisa que fez a população negra sobreviver foi empreender. Agente tem desde aquelas mulheres da Bahia que vendiam comida no tabuleiro (e muitas delas até compravam alforria, nessa prática de vender comida na cabeça!). Sem frequentar nenhum processo de educação ou conhecimento formal, sem nada. Elas precificavam o produto, seguravam o tabuleiro na cabeça, tinham estratégias de comunicação, todo um sistema de metodologias complexas. Aí você dá um salto nessas treze décadas e chega nas influenciadoras digitais, que vendem conteúdos das grandes marcas; que fizeram a transição da revolução capilar, mudando o mercado de cosméticos no Brasil. Então na mulher negra eu vejo a mola propulsora desse grande movimento que a gente tem hoje de empreendedorismo. Economia Criativa pra mim vem dessas mulheres não da Europa, dos Estados Unidos. Quem fez essa revolução no Brasil foram as mulheres negras; eles de fora é que hackearam a forma delas criarem, circularem e escoarem essa produção; então eu sou cria delas.
Em 17 anos, agente reuniu mais de 150 mil pessoas em todas as edições. Só no ano passado foram mais de 27 mil pessoas, com uma média de 100 empreendedores por edição, então são mais de mil quepassaram pela FEIRA PRETA e por isso hoje viajamos por outros estados, como o Rio de Janeiro, o Maranhão, o Distrito Federal. Começou bem pequena e hoje tem números expressivos e se transformou nessagrande rede de empreendedores que conecta grandes histórias; conecta as criatividades, as inventividades da população negra, sobretudo de jovens e mulheres.Isso mostra como temos uma economia negra hoje. Na verdade, sempre tivemos mas isso nunca ficou tão evidente e quantificável. A gente tem uma população autodeclarada negra que define a maioria brasileira. À medida que essas pessoas assim se autodeclaram vão procurar produtos e serviços que se adequem às suas especificidades e quando isso acontece aumenta o número de empreendedores, principalmente aqueles que criam produtos afrocentrados para atender àquela demanda. Então o mercado vem mudando nos últimos 20 anos, olhando pra essa estética negra que começa a criar produtos, serviços, uma infinidade de relações artístico-culturais e desenvolve da intelectualidade à indústria para atender a demanda de uma população que se posiciona num corpo que é político: a roupa que veste é política em suas estampas, o cabelo crespo assumido é político. Enfim, o posicionamento é de valorização da identidade negra, então hoje a gente tem uma economia que já passa por essas questões. Nunca se falou tanto em diversidade como se tem falado agora e economia negra hoje traz embutido o conceito de black money, uma ideia americana de fazer circular dinheiro entre os negros. E segue uma ampliação em nível macro, de mercado: Como é que esses signos são decodificados pelo grande capital, pelas empresas, pela grande indústria? Um bom exemplo é a questão da transição capilar: a gente nunca desejou tanto cabelo crespo, cacheado, ondulado, de várias texturas que vem da questão do ‘corpo político’. O mercado se apropria disso, transforma em produto e se beneficia disso. A FEIRA PRETA vem pra refletir o que é esse grande capital e como pode ser protagonista um empreendedor que sempre teve à margem. Importante salientar que a maioria dos empreendedores na categoria MEI (Microempreendedores Individuais)é composta por mulheres; e essa parcela, maciçamente negra. Mulheres que não conseguem se estabelecer no mercado formal de trabalho com a justa valorização de sua mão-de-obra e poder criativo eque vão empreender iniciando sempre na mesma lógica da “se virologia”, como a da minha família. E aí o que a FEIRA PRETA faz é estabelecer um caminho de qualidade pra essa construção de sucesso; pra elas serem sustentáveis, acessarem esse grande mercado em posição de protagonismo.
Para isso foi fundamental a criação do AFROLAB, baseado numa pergunta simples: como fazer o empreendedor da ‘se virologia’ se qualificar para um mercado que está se diversificando mas que mantém a exigência de qualidade? Começamos trazendo os contextos de inovação como workshops e em 2017 demos um salto em parceria com a Aliança Empreendedora, aplicando uma metodologia que olha para a base da pirâmide social. Analisando os dados dos 17 anos de existência da Feira e sua especialização no empreendedor negro, decidimos criar uma metodologia própria que leve em consideração nossas especificidades e a trajetória até aqui.Nosso método olha para a cadeia da produção ao consumo mas traz como premissas as questões dos saberes ancestrais, do conhecimento e valorização de metodologias que não estão no campo acadêmico; são as táticas da minha avó, minha bisavó. Reconhecer essas especificidades do empreendedor e trabalhar com elas na perspectiva de luz, valorização e oportunidades para outros. Criar um espaço de apoio que também é fortalecimento de uma identidade desvalorizada historicamente. É dizer: ‘cara, vamos lá! O que você está achando que é um problema, pode trazer uma oportunidade que podemos explorar e replicar por outros. Avançar pela técnica que acredita ser unicamente sua, mas não é. Na verdade é de muita gente e traz oportunidades para muitos. Vamos transformar isso numa receita familiar’.
Na metodologia do AFROLAB usamos a analogia do rio: um fluxo da nascente, com afluentes e que deságua no mar. Então são seis dias de imersão em que a gente convida no primeiro dia a mergulhar nesse rio, com a questão do autoconhecimento e seguir um trajeto até encontrar o grande mar/mercado da FEIRA PRETA. E os afluentes são justamente aqueles braços da cadeia econômica: criação, produção, distribuição e consumo. Mais do que produtos ou serviços a questão é de qualificação a priori do que ela é, de sua identidade, da busca de protagonismo na sua própria história. O produto principal é a sua própria trajetória.Então percorremos a cidade, vamos às exposições, restaurantes, etc. Fazemos uma imersão de 360 graus que passa também pelos cinco sentidos. Depois dessa sensibilização a gente convida à co-criação: ‘Vamos juntos desenvolver algo?’ Para depois ir mais fundo ainda no seu próprio negócio: ‘Como crio ferramentas para poder inovar? Como reinvento o que estou acostumado a fazer?’.
AFROLAB é uma metodologia que olha para o empreendedor enquanto ‘pessoa física’. Como esse ser especial em sua especificidade coloca seu potencial na sua pessoa jurídica e impacta o negócio.A gente olha muito pelas semelhanças (quem produz elementos similares ou de mesma natureza) e apartir daí estimula o trabalho em rede: o que eu sei, o que você sabe; como nos complementamos; onde sua expertise me libera na minha cadeia e fortalece a sua; como cooperar e olhar para a rede, para a colaboração.O AFROLAB não é exclusivo para negros, mas tem essa especificidade de nicho de produção/consumo para um mercado negro. Podem entrar brancos? Claro!Muito bem-vindos, mas sobretudo prioritariamente nos organizamos para a população negra. E o fato de estarem em maioria entre semelhantes faz com que se coloquem com segurança, reforça sua autoestima e faz aflorar toda a plenitude. Especialmente por que em muitos espaços em que estão eles são minoria, apesar de maioria na população brasileira. O AFROLAB permite esse reconhecimento de seu valor também na trajetória e presença do outro. Capta e utiliza uma energia de ‘estar entre os meus’; e quando estou entre os iguais, as minhas histórias acabam sendo um espelho e eu me sinto segura para colocar a minha potência, auxiliar os outros e expor as nossas fragilidades, aprendendo com a solidariedade e experiência de outros. Ao olhar então para a realidade comum de indivíduos a gente começa a pensar numa matriz de fragilidade/competência/habilidade coletiva. Então, o que eu sei, o que você sabe, como aqui junto a gente desenvolve processos de cooperação onde vamos crescer juntos mas cada um dentro do seu quadrado, do seu domínio. Interessante que no grupo a gente sempre tem produtor, tem equipe de comunicação. Se eu não sei fazer uma foto, fulana sabe. Então talvez ela possa fazer isso. E a outra sabe postar no Instagram e domina as redes sociais. Aprenda a desapegar e deixar que o outro faça aquilo e você se concentra no que sabe fazer. Então a gente estimula muito essa questão do desapego. Entenda o que você faz bem, traga pessoas, crie oportunidades, aproveite do talento do outro e valorize-o, criando novas chances para todos. AFROLAB também é uma metodologia de economia compartilhada: a moeda não é o dinheiro mas aquilo que eu posso entregar para o outro daquilo que é o meu potencial.
O maior desfio para o empreendedor negro é ter a autoestima de se ver como tal. ‘Ah! Eu vendo tapioca, não sou empreendedor!’ Como não? Você levanta todo dia, planeja as coisas, vai lá comprar material, produz, sai pra vender… Apenas quando ela e ele conseguem se ver nesse lugar é que conseguem acessar mais qualificadamente esse ecossistema. Se não tem autoestima para se entender como empreendedor aí tá fora do ecossistema. Estar dentro disso é reivindicar esses direitos. De estudo, de acesso a crédito, de uma série de coisas que temos que ter se quisermos construir um país mais inclusivo. Mas só consigo me inserir se eu me enxergar naquele lugar, se eu estiver naquele lugar. Aí passa pela autoestima: ‘Eu empreendo, eu sou empreendedora’ e exijo meu lugar de cidadã e cidadão, para mim e para todos.”
Para mim, um brasileiro como milhões fenotipicamente brancos e geneticamente negros nada poderia trazer mais orgulho: iniciativas como a FEIRA PRETA finalmente começam a libertar da escravidão os milhões de negros e negras do Brasil.