
O desenvolvimento de um mercado de biogás, gerado a partir de resíduos agropecuários, como fonte de energia pode ajudar o Brasil a cumprir o compromisso de reduzir em 30% as emissões de metano até 2030, assumida pelo país ontem na COP-26, na Escócia.
Segundo estimativas da Associação Brasileira do Biogás (ABiogás), o Brasil tem potencial de produzir, até 2030, cerca de 30 milhões de metros cúbicos por dia de biogás, que pode ser usado como combustível com um potencial energético equivalente ao do gás natural fóssil.
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Isso seria suficiente para tirar da natureza 36% das emissões de metano no país em menos de uma década, mais do que a meta estipulada em Glasgow.
O biometano é produzido a partir da decomposição de resíduos orgânicos de plantações ou da criação de animais, dando uma utilização nobre a toneladas de metano por ano que, em sua grande maioria, é liberado para a atmosfera sem aproveitamento energético, agravando o efeito estufa.
O gás é considerado pelos cientistas 20 vezes mais danoso ao clima que o CO2 e tem sido considerado responsável por 30% do aumento da temperatura do planeta.
Hoje, o Brasil produz somente 500 mil metros cúbicos por dia de biometano, em apenas quatro usinas, duas no Rio de Janeiro, uma em São Paulo e outra no Ceará.
‘Pré-sal caipira’
O biogás pode ser usado como substituto do diesel em caminhões, como uma espécie de gás natural renovável, gerar energia elétrica ou servir de insumo para a fabricação de produtos como a amônia.
Para o presidente da Associação Brasileira do Biogás (ABiogás), Alessandro Gardemann, a crise hídrica e a alta do custo da energia favorecem o desenvolvimento dessa fonte de energia.
— Nossa expectativa é baseada em dados dos nossos 80 associados que estão desenvolvendo projetos. A corrida apenas começou — corrobora o vice-presidente da Abiogás, Gabriel Kropsch.
Ele cita como exemplo o empreendimento da Cocal Energia que utilizará resíduos da cana-de-açúcar (vinhaça e torta de filtro) para a produção de biometano que será injetado na rede da GasBrasiliano (concessão de distribuição de gás natural no interior paulista).
O biometano partirá de Narandiba (SP), cidade onde a Cocal está localizada, e poderá atender residências, comércios, indústrias e veículos leves e pesados de Presidente Prudente, além de Pirapozinho.
O investimento é R$ 160 milhões e beneficiará 230 mil pessoas. A previsão para o início da distribuição do biometano é julho de 2022. O potencial de produção da planta é de 24 mil metros cúbicos por dia.
Kropsch diz que o Brasil teria condições de fabricar até 120 milhões de metros cúbicos por dia, distribuídos pelas cinco regiões do país, criando o que ele chama de um enorme “pré-sal caipira”.
Isso se todos os resíduos produzidos hoje, da agroindústria e do saneamento, fossem aproveitados. E lembra que, com este potencial, seria possível suprir em 35% o consumo de energia elétrica e em 70% a demanda de diesel.
Amônia verde
Outra iniciativa é a fabricação de amônia verde pela Yara, uma das maiores produtoras mundiais de fertilizantes, em parceria com a Raízen para fábrica em Cubatão (SP). O contrato prevê o fornecimento, a partir de 2023, de 20 mil m3 diários de gás natural renovável.
Será a primeira vez que a companhia irá produzir amônia verde a partir do biometano em toda a sua operação global. O biometano será fornecido pela Raízen por meio da rede da Comgás, uma das distribuidoras de gás canalizado de São Paulo.
No transporte pesado, especialistas lembram que o biometano pode reduzir em até 96% as emissões de CO2 em substituição ao diesel em caminhões e ônibus urbanos.
Silvio Munhoz, diretor de Vendas de Soluções da Scania Brasil, única montadora no país que comercializa caminhões a gás, conta que a procura por este modelo aumentou exponencialmente desde 2019, quando vendeu as primeiras unidades para negócios particulares. Menos de dez.
De acordo com a montadora, o caminhão a gás é 30% mais caro que o diesel mas “se paga em cerca de cinco anos” porque o gás é mais barato e porque o frete verde tem sido priorizado pelas grandes empresas.
Segundo Silvio, geralmente, as empresas pagam mais para o frete verde, priorizam o embarque e desembarque para este tipo de caminhão e fazem contratos por períodos longos, algo raro na área.
Hoje, a fábrica da Scania em São Bernardo do Campo (SP) trabalha para entregar 400 unidades a gás até o início do ano que vem. Segundo dados da empresa, a participação do caminhão a gás na produção no Brasil é de 7%, “muito maior do que a expectativa”.
— Em breve, vamos chegar aos 9%, nível de participação que temos na Europa — projeta o executivo.
Ele lembra, no entanto, que o GNV ainda é o gás mais utilizado por estes caminhões mas há casos de mistura com o biometano ou uso exclusivo do biogás:
— É a melhor alternativa ao diesel, viável ao Brasil principalmente no aspecto econômico. O potencial de biometano do Brasil é brutal. Mas ainda há muito lobby pelo diesel.
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Ele conta que as frotas das transportadoras começaram a ganhar caminhões a gás após exigências dos embarcadores, as empresas donas dos produtos a serem transportados.
— Por aqui o movimento começou com grandes empresas que têm metas claras de redução de CO2. Mas depois que os transportadores perceberam que os embarcadores estavam interessados nesse serviço, também aderiram. E hoje a maior parte dos caminhões que vendemos são para as transportadoras que vão oferecer aos clientes um frete diferenciado — explica Silvio.
Ele cita o caso do Mercado Livre:
— Deu preferência ao frete verde após oferta. Antes existia uma resistência a adoção do gás, porque havia a ideia de que o caminhão a gás teria motor mais fraco que o diesel. Isso caiu por terra.
A L’Oréal foi a primeira empresa no Brasil a aderir ao transporte verde. Por exigência da marca, a RN Logística adquiriu um modelo a gás.
Atualmente, a L’Oréal contrata média de 190 carretas por mês, das quais cerca de 5% são movidas a biometano. Assumiu a meta de descarbonização em 50% do transporte geral até o ano de 2023.
Giovani Machado, diretor de Estudos Econômico-Energéticos e Ambientais da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), acredita que o gás natural de origem fóssil (GNV, em forma gasosa, e GNL, em forma líquida), menos poluente que o diesel, pode avançar Brasil abrindo espaço também para o biometano.
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— A discussão fica muito no tudo ou nada, como se não houvesse a possibilidade de mesclar tecnologias e fontes ou com tecnologias muito caras, o que dificulta o processo de descarbonização — analisa Giovani, para quem o biogás pode descarbonizar frotas com tecnologias atuais e também se conectar com tecnologias avançadas, que estão se tornando disponíveis. — Além disso, há realidades financeiras distintas no país. É preciso reconhecer a variedade de situações e usar a variedade de tecnologias também. A discussão não pode ser monolítica.
A EPE entende ainda que é necessário remover as barreiras para a entrada de novas tecnologias mais limpas. E Luciano Basto Oliveira, consultor técnico da EPE, observa que é necessário atualizar a legislação municipal como já foi feito com os ônibus elétricos.
— O que vem primeiro, comprar um veículo sem ter abastecimento ou construir a forma de abastecimento sem ter a demanda? O ovo ou a galinha? É preciso orquestração para que compense financeiramente a troca do veículo a diesel pelo a gás e isso passa pela legislação sobre a troca da frota. Ela precisaria ser atualizada pensando em pagar o investimento, ao mesmo tempo em que se programa construções de biodigestores em cidades do interior. Sem a possibilidade de abastecimento a gás na maioria dos municípios, haverá restrição de venda e o modelo de negócio fica afetado.
Com informações do jornal O Globo