
A prática de blackfishing se tornou cada vez mais presente no cotidiano de famosos. Neste mês, por exemplo, a cantora britânica Jesy Nelson, ex-membro do Little Mix, se viu no centro de uma polêmica ao ser acusada de mudar a aparência para se assemelhar a uma pessoa negra. Esse é apenas o caso mais recente. Kim Kardashian, Iggy Azalea, Ariana Grande e Anitta também integram a lista de celebridades que já viveram o mesmo. Mas afinal, o que esse termo significa e o que pode levar uma pessoa a praticá-lo?
Segundo Izabel Accioly, mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em geral, o blackfishing é praticado por mulheres brancas que fazem um conjunto de transformações para alcançar a aparência de negras. A prática vai desde a pele bronzeada até mudanças na estrutura do cabelo, preenchimento labial e técnicas de maquiagem. A pesquisadora de relações raciais e branquitude conta que discussões sobre o tema são cada vez mais frequentes por serem impulsionadas pelas redes sociais.
“Fazem isso porque realmente tem o interesse de se passarem por uma pessoa negra. Os negros, porém, sofrem preconceito racial. É como se você pudesse ter a aparência, escolher os pontos que acha positivos, mas na hora que aquilo te cansa, você desliga”, ressaltou.
A controvérsia envolvendo Jesy Nelson ganhou força recentemente, quando o influenciador digital No Hun expôs na internet capturas de tela mostrando mensagens atribuídas à Leigh-Anne Pinnock, do Little Mix, que é negra.
As declarações que teriam sido enviadas por ela contêm críticas à Jesy por suas mudanças na aparência, de forma que aparentasse ser uma mulher negra. Além disso, o tabloide britânico “The Sun” viu que o perfil de Leigh-Anne no Instagram curtiu uma postagem da conta @everydayracism, que significa “racismo diário” em tradução livre, explicando o conceito de blackfishing.
“Muitas vezes acontece (a apropriação cultural) não porque uma pessoa quer ser lida como negra, mas ela quer se apropriar de um elemento específico da cultura negra. Qual o problema? É que se eu, mulher negra, sair na rua de turbante, muitas pessoas vão me olhar estranho, vão julgar como algo negativo. Vão utilizar um elemento da minha própria cultura para me julgar inferior. Quando pessoas brancas fazem o mesmo, elas são vistas como estilosas, alternativas, têm um valor positivo. Então você pega o que é meu, o que é sagrado pra mim, próprio da minha cultura, mas eu não posso usar porque é visto como negativo.”
‘Ausência de uma contextualização histórica’
Ynaê Lopes dos Santos, professora de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) concorda que a definição de blackfishing está muito ligada à apropriação cultural. Ela explica que muitas vezes pessoas brancas se aproveitam do privilégio de ter a pele clara numa sociedade que é racista para adotar estilos ou expressões característicos da cultura negra.
“Um homem branco ou uma mulher branca que usam rastafári não são vistos socialmente da mesma forma que um homem ou uma mulher negra que usam rastafári”, exemplificou, ressaltando. “O problema não é o uso em si das expressões visuais ou de estilos de músicas negras pelas pessoas brancas, mas o impacto que isso tem na sociedade.”
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No entanto, para a professora, a definição de blackfishing não é algo tão simples quanto parece.
“Particularmente, acho muito difícil pontuar onde começa o blackfishing e apropriação cultural. Pelo que observo, esses dois movimentos estão ligados a uma total ausência de percepção da população branca em relação aos significados do que esses adereços, cabelo ou usos da expressão cultural negra, de origem africana, têm. Além da ausência de uma contextualização histórica e política dessas expressões.” Ynaê Lopes dos Santos
‘Prática não é homenagem’
Izabel, que é negra, destaca que o fato de mulheres como ela terem demonstrado na última década que aceitam e assumem suas características naturais também fez com que outros grupos enxergassem traços negros de forma diferente.
“A medida que a gente se valoriza, pessoas de outros grupos também vão fazê-lo. A questão é que, em vez de apenas admirar, querem tomar para si. É muito cômodo. Quando eu quero, tenho meus privilégios e está tudo bem, posso simplesmente tirar a maquiagem. Os negros não têm essa possibilidade. Não é uma questão de admiração ou homenagem. A prática é um desrespeito. Se você gosta da nossa cultura, tem que gostar da gente também”, disse.
Ela ressalta, porém, que praticar blackfishing está longe de ser uma homenagem. O argumento chegou a ser usado por Jesy Nelson ao se defender das acusações recentes. Em entrevista à Vulture, ela afirmou que “ama a cultura negra”.
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“Durante todo o tempo em que estive no Little Mix, nunca recebi (acusações de) nada disso (blackfishing). E então eu saí (do grupo) e as pessoas de repente começaram a dizer isso. Mas quero dizer que eu amo a cultura negra. Eu amo música negra. Isso é tudo que eu sei; é como eu cresci. Estou muito ciente de que sou uma mulher britânica branca; eu nunca disse que não era”, afirmou Jesy.
Numa live no Instagram, Nicki Minaj, com que Jesy gravou a música “Boyz”, defendeu a britânica, indicando que ela foi alvo de “más” declarações por “ciúme”. Para a rapper, Jesy deveria receber apoio das integrantes do Little Mix. Na conversa com Nicki, Jesy disse que sua “intenção nunca foi ofender as pessoas racializadas” com o videoclipe novo. Em vez disso, ela queria “celebrar” o R&B dos anos 90 porque essa é a era da música que ela ama.
Percepções diferentes de pessoas racializadas
Izabel chamou atenção ainda para o fato de existir uma grande diferença no entendimento dos grupos racializados no Brasil e no exterior, como nos Estados Unidos ou em países europeus, onde há enfoque maior na origem de um indivíduo, enquanto no Brasil, fica mais na cor de pele.
“Aqui no Brasil, uma pessoa que tem um pai negro pode ser lida como branca e usufrui dos privilégios disso. Lá nos EUA a coisa é diferente. Você pode até ter a pele mais clara e não ser reconhecida como negra em alguns lugares, mas se você vem de uma família negra, num bairro negro, frequenta uma igreja, se você esteve bem inserido nessa cultura, ele é muito bem aceita como negra”, explicou.
Diante dessa importância que a origem de uma pessoa tem em outros países, a linhagem de Jesy Nelson chegou a ser destacada por um tabloide britânico em meio à polêmica de blackfishing, mostrando que os pais da cantora são brancos e, portanto, ela também é considerada branca.
Nesse contexto, Izabel também destacou o fato de que, no Brasil, a autodeclaração é um exemplo de como mudou, ao longo dos anos, a percepção de quem pode se considerar uma pessoa negra.
“No Brasil, é muito comum que as pessoas, por não saberem que pardo e preto, somados, são negros, acabam colocando pardo como um “coringa”, que desse pra ser utilizado por qualquer pessoa. Aqui é muito comum encontrar pessoas que não sabem se definir. Muitos acham que a conta é: minha mãe é branca e meu pai é negro, então eu sou parda. Não é simples assim. Aqui não tem a ver tanto com a origem, mais com a aparência. Nos últimos anos, o número de pessoas que se autodeclaram negros no Brasil também aumentou. Então há cada vez mais pessoas compreendendo essa negritude, cada vez mais conscientes de quando essa negritude é desrespeitada, quando ela é ameaçada, colocada em risco. A gente questiona mais.” Izabel Accioly
‘A luta antirracista não é apenas negra’
Para Ynaê, o que é símbolo no movimento negro vira, com o blackfishing, algo vazio, sendo “despolitizado pelas mulheres brancas”. Por isso, a professora acredita que a melhor maneira de um branco lutar contra o racismo não é descaracterizando o que é do negro, mas sim, reconhecendo os próprios privilégios.
“A luta antirracista não é apenas negra. O racismo é um sistema de poder que gera uma série de bônus para a população branca que geralmente não são contabilizados porque são considerados como a normalidade. Não podem ser. Acho que é fundamental, não só nesse contexto, mas em qualquer outro, que a população branca comece a tomar consciência da definição, da origem e da dimensão do racismo e de qual a responsabilidade delas para que isso não se perpetue.” Ynaê Lopes dos Santos
Com informações do jornal O Globo