Capitalismo financeiro e o movimento de pequenos investidores no caso da GameStop

O mercado financeiro mundial foi chacoalhado por um movimento em rede deflagrado no Fórum do Reddit r/WallStreetBets, que conta com quase sete milhões de membros. À primeira vista, pode parecer um episódio em que um grupo de cidadãos comuns resolveu punir o que consideram um sistema injusto, que perpetua um jogo desigual.  Em uma operação coordenada de milhares de pequenos investidores, mobilizados por plataformas na internet, foram compradas ações de uma rede de lojas de jogos, a GameStop.

Algumas análises feitas sobre o fenômeno apontam demonstração do poder da “multidão” nas redes, flash-mob econômico e até mesmo como uma “nova frente na guerra de classes”. O conjunto de mobilizações chegou a ser enaltecido como uma luta contra os grandes tubarões do mercado.

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O enxame de pequenos protagonizou uma queda-de-braço com grandes fundos de cobertura (hedge funds) que haviam apostado contra a GameStop, fadada à falência. A estratégia levou a uma alta de preços dos títulos da empresa e colocou em risco os grandes especuladores (que ganhariam na queda das ações). 

Depois dessa experiência, muitas outras se repetiram, inclusive no Brasil com as ações extremamente desvalorizadas do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB). Na ocasião, um grupo de investidores pessoas físicas se organizou em uma tentativa de influenciar o preço das ações da resseguradora. Juntos, eles compram ações da empresa para pressionar fundos de investimento a reverter apostas na queda dos papéis na bolsa de valores.

Na experiência brasileira, a bolsa de valores (B3) submeteu ações da IRB a leilão. As redes e os fóruns utilizados pelos investidores de varejo sofreram bloqueios e as negociações com os papéis dessas empresas foram controladas.

Cenário mundial em crise

Depois do grande colapso financeiro de 2008, a economia mundial enfrenta um período turbulento. Situação que foi agravada com a crise sanitária em virtude da pandemia do coronavírus. Desemprego em massa e ataques selvagens sobre os níveis de vida estão na ordem do dia. 

Nesse cenário, muitas pessoas começaram a fazer perguntas fundamentais sobre a forma como a sociedade está organizada; particularmente, o papel dos bancos e das instituições financeiras – o “capital financeiro” – foram colocados sob o microscópio.

Visão marxista

O jornalista e escritor marxista de origem polonesa Tomasz Konicz, em artigo publicado no blog da editora Boitempo, dissecou o recente episódio a partir do ponto de vista do materialismo histórico. No texto, ele classificou a GameStop, rede de lojas especializada em compra e venda de mídia para jogos de computador, como um fóssil. 

Konicz comenta que em virtude do contínuo aumento da largura de banda da internet e a ampliação das plataformas de jogos digitais como a Steam, parece selar o fim desse modelo de negócios da GameStop. Ele prevê que deve acontecer com ela o que se passou com as grandes cadeias de locadoras de vídeo, que há muito tempo tiveram que abrir caminho para os serviços de streaming. 

“Quando um modelo de negócios anacrônico não é mais rentável, quando as corporações que agem nesse mercado obsoleto mudam tarde demais e a falência se aproxima, as hienas e os abutres entram imediatamente em cena. “Investidores” gostam de comprar tais corporações em dificuldade a baixo custo para canibalizá-las, desmantelá-las, vender as ações remanescentes com lucro e demitir a maioria dos funcionários.”
Tomasz Konicz

No artigo, Konicz explica que, nas bolsas de valores, os fundos de cobertura (hedge funds) podem se beneficiar da queda dos preços de empresas à beira da falência por meio das chamadas vendas a descoberto. 

Nessas ocasiões, o especulador toma emprestado o título em questão e o coloca à venda na bolsa de valores. Depois que o período de empréstimo expira, o título é comprado de volta por meio de uma compra de cobertura e é devolvido ao proprietário. Se o preço do título tiver caído, da diferença entre o preço no “empréstimo” e revenda da ação (quando estava mais alto) e o preço na posterior compra de cobertura resulta um lucro especulativo.

Para Konicz, do ponto de vista dos agentes do mercado financeiro, tanto faz se os preços sobem ou descem. Mesmo que as empresas entrem em dificuldades financeiras ou colapsem mercados inteiros – há maneiras de lucrar com essa situação, desde que seja feita a previsão correta. 

Quando as previsões dos especuladores não se concretizam e a queda dos valores das ações de negócios fadados à falência não se tornam realidade, ocorrem problemas como no caso da GameStop. É o chamado “short selling” (venda a descoberto no jargão do mercado financeiro).

Outro fenômeno apontado por Konicz no episódio da GameStop é de origem comportamental. O marxista avalia que a plataforma social Reddit reúne forças hostis, por variados motivos, às atividades dos grandes nomes estabelecidos em Wall Street. 

“Corretores jovens e agressivos que querem simplesmente pegar uma grande fatia do bolo com os métodos mais brutais possíveis, misturam-se com ativistas de esquerda preocupados com a redistribuição da riqueza, bem como com produtos da decomposição radical da direita nos EUA, onde a ideologia dos “mercados livres” é levada muito a sério. A nebulosa missão de democratizar os mercados financeiros, punir os “oportunistas” e “fraudadores” de Wall Street, redistribuir o dinheiro em favor da classe média, constitui o frouxo parâmetro comum desse enxame.”
Tomasz Konicz

O autor conclui que o preço para esse fenômeno de décadas no mercado financeiro é a crescente montanha global de dívidas. Ele aponta ainda para a intensidade cada vez maior das bolhas do mercado financeiro, que dificilmente podem ser estabilizadas. 

Konicz ressalta ainda que o último impulso de crise, na eclosão da pandemia em 2020, apenas foi estabilizado com grande dificuldade e graças à ação de Estados e Bancos Centrais, que bombearam recursos para os mercados financeiros absurdamente inflados. 

O playground no qual o enxame politizado  一 como o episódio da GameStop 一 é considerado uma modalidade “disruptiva”. Mas, na realidade, trata-se de um fenômeno instável e está baseado em uma fundação podre, uma ironia adequada ao capitalismo tardio que uma aposta ambígua com ações de jogos possa desencadear um novo impulso de crise.