
O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, se manifestou publicamente contra a Europa se tornar um povo “mestiço”. A assessora direta do premiê Zsuzsa Hegedus renunciou depois do discurso. Zsuzsa Hegedus, que conhece o nacionalista Orbán há 20 anos, descreveu o discurso dele como um “texto puramente nazista”, segundo noticiou a imprensa local. O Comitê Internacional de Auschwitz, formado por sobreviventes do Holocausto, chamou o discurso de “estúpido e perigoso”.
O discurso aconteceu no sábado (23) em uma região da Romênia que tem uma grande comunidade húngara. Ao discursar, Orbán disse que os povos europeus deveriam ser livres para se misturar uns com os outros, mas que a mistura com não-europeus criava um “mundo mestiço”.
“Estamos dispostos a nos misturar uns com os outros, mas não queremos nos tornar mestiços”, declarou ele.
As opiniões antimigração de Orbán são bem conhecidas, mas para Hegedus, o discurso de sábado passou dos limites.
“Não sei como você (Orbán) não percebeu que o discurso que fez é uma diatribe puramente nazista digna de Joseph Goebbels”, escreveu ela em sua carta de demissão, segundo o site de notícias húngaro hvg.hu.
Goebbels era ministro da propaganda de Adolf Hitler na Alemanha nazista. Ele era conhecido pelo dom da oratória e profundo antissemitismo.
Bolsonaro estreita laços com Orban
Em fevereiro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro se encontrou com Órban, em Budapeste. Na ocasião, chamou o primeiro-ministro húngaro de irmão e disse haver afinidades políticas e ideológicas entre o Brasil e a Hungria. Segundo ele, os dois países seriam representantes de valores como Deus, pátria, família e liberdade.
Esses termos têm origem no fascismo italiano, adotado por fascistas brasileiros da Ação Integralista e pela ditadura de Portugal, a mais longa da Europa, entre 1933 e 1974.
As coincidências entre a agenda internacional de Bolsonaro e suas ações no Brasil chamam a atenção por sua semelhança em relação aos projetos que, ao longo de anos, foram implementados por Viktor Orbán. O húngaro assumiu o poder em 2010. Mas, durante uma década, o que ocorreu foi o esvaziamento da democracia e um abalo nos pilares da liberdade. Hoje, Orbán controla a Corte Constitucional, o Ministério Público e dois terços do Parlamento, além da imprensa, clubes de futebol, as artes, os espaços públicos e universidades.
Com eleições se aproximando em 2022 e com a oposição tentando criar pela primeira vez uma frente única para derrotá-lo, o primeiro-ministro ampliou sua radicalização e o uso da guerra cultural como forma de reagir à pressão. No Parlamento, leis foram aprovadas nas últimas semanas tornando a adoção de crianças por casais homossexuais um ato praticamente impossível. Ele ainda modificou normas que acabaram impedindo que menores de 18 anos tenham acesso a qualquer tipo de material que possa fazer alusão ao movimento LGBT. Livros com tais conteúdos são obrigados a trazer um alerta em suas capas e a publicidade de qualquer empresa terá de seguir regras sobre a divulgação de conteúdo.
Em seu projeto de destruição da democracia num caminho similar ao que adota Bolsonaro hoje, Orbán foi em busca da construção de uma Justiça que fosse leal a ele e sua ideologia. Se uma primeira tentativa de reforma do Judiciário esbarrou em protestos da UE, ele agora modifica de forma mais sutil, transformando o sistema de pontos pelos quais os candidatos são julgados para ganhar vagas de juizes. Quem passou por funções no governo, segundo a nova lei, ganha pontos extras. Resultado: o fim de qualquer investigação sobre corrupção no governo e entre seus aliados e o respaldo legal às mudanças de leis sobre o conceito de família, religião, imigração e do próprio sistema democrático.
Ataques de Orbán às ONGs e ativistas
Outro foco dos ataques de Orbán tem sido as ONGs, ativistas ou qualquer movimento que questione de forma dura o governo, outra bandeira também adotada pelo governo Bolsonaro. Uma das formas de intimidação em Budapeste sobre os movimentos sociais foi a proliferação de controles de auditoria e de impostos, principalmente entre 2014 e 2016. Além disso, todas as entidades que recebem algum tipo de recursos do exterior passaram a ser registadas por “agentes externos”. Apesar de o país ter cerca de 60.000 ONGs, elas passaram a ser excluídas do processo de elaboração de políticas públicas.
Assim como Bolsonaro argumenta que o único termômetro da representatividade da democracia é a eleição, o governo Orbán usa exatamente esse argumento para justificar que organizações da sociedade civil não têm mandato para atuar na formulação de políticas públicas. As coincidências na forma de agir entre os dois governos também ocorrem no tratamento da imprensa. Tanto em Brasília como em Budapeste, os meios de comunicação são considerados como uma força a ser neutralizada.
Por anos, aliados do governo passaram a comprar jornais locais, rádios e outros canais. Quando praticamente toda a imprensa estava nas mãos desses empresários, eles decidiram doar seus impérios para uma obscura fundação, em 2018. No total, 400 meios de comunicação estariam sob uma só direção. Uma semana depois, Orbán assinou um decreto isentando essa fusão de qualquer controle externo, numa centralização sem precedentes. A coordenação entre jornais regionais, revistas, rádios e TVs passou a ser completa, com títulos parecidos para suas manchetes, mesmas imagens e argumentos.
Governo “leva à fome”
Enquanto financia quem o apoia, o governo “leva à fome” os meios independentes. Empresas que fazem publicidade em jornais contrários ao governo temem perder contratos públicos e o governo passou a não mais responder aos emails e pedidos de informação por parte desses jornais. Enquanto isso, jornalistas são assediados e a oposição passou a ser praticamente vetada de todos os debates nas televisões.
O mesmo movimento de controle também passou pela academia de ciência, dirigidas por leais seguidores do partido de Orbán. Tais estruturas passaram a concentrar grande parte do dinheiro do Estado, com professores com salários mais elevados, esvaziamento dos cursos de Ciências Humanas, o controle das universidades e, na prática, o fim de suas autonomias.
A guerra cultural ainda teve como objetivo reescrever a história do país e estabelecer o comando de teatros e museus para que a ideologia de extrema direita prevalecesse nas peças escolhidas, nas mostras e até mesmo na programação da Opera Nacional. Com uma diferença de dez anos em relação ao governo Bolsonaro, a Hungria serve de modelo de uma guinada iliberal. E que agora é assumida em parte pelo Brasil para influenciar na agenda internacional.
No Brasil, Bolsonaro apresenta ligação com o neonazismo
A cientista social, antropóloga e pesquisadora Adriana Dias, que dedica sua vida ao estudo do avanço dos grupos neonazistas no mundo e, especialmente no Brasil, divulgou dados preocupantes sobre o tema. “Somente em 2021, quase 1 milhão de pessoas leram material neonazista”, declarou Adriana. Além da leitura, esse conteúdo acabou sendo propagado de diversas formas, principalmente por meio das redes sociais, inclusive estimulado Bolsonaro, que nutre uma ligação antiga com esses grupos.
Outro número assustador, segundo Adriana, é que hoje há 530 células de 52 grupos neonazistas. Isso representa que há focos “em quase todos os estados do Brasil”. Ela contou, ainda, que hoje esse crescimento é de 150% ao ano. “Perdeu-se o controle da ameaça que isso representa”.
Leia também: Apologia ao nazismo cresce e Bia Kicis se preocupa com ‘assassinato de reputações’
Para corroborar que a ligação de Bolsonaro com o neonazismo é antiga, Adriana relembrou que encontrou uma carta do atual presidente publicada em sites neonazistas em 2004. Três sites diferentes de neonazistas mostravam um banner com a foto de Bolsonaro e o link que levava ao site que o então deputado tinha na época, além de uma carta em que ele afirmava:
“Ao término de mais um ano de trabalho, dirijo-me aos prezados internautas com o propósito de desejar-lhes felicidades por ocasião das datas festivas que se aproximam, votos ostensivos aos familiares. Todo retorno que tenho dos comunicados se transforma em estímulo ao meu trabalho. Vocês são a razão da existência do meu mandato”, dizia a carta.
Governo Bolsonaro faz alusões ao nazismo
A Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) publicou em maio de 2020, uma mensagem com uma construção próxima à de um slogan do nazismo. “Parte da imprensa insiste em virar as costas aos fatos, ao Brasil e aos brasileiros. Mas o governo, por determinação de seu chefe, seguirá trabalhando para salvar vidas e preservar o emprego e a dignidade dos brasileiros. O trabalho, a união e a verdade libertarão o Brasil”, escreveu a Secom no post.
A expressão “o trabalho liberta” estava inscrita na entrada do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, onde se estima que a máquina de guerra nazista tenha assassinado 1,3 milhão de pessoas – principalmente judeus, mas também poloneses cristãos, ciganos e soviéticos.
Em entrevista à BBC News Brasil, o rabino da Congregação Israelita Paulista (CIP) Michel Schlesinger diz que o episódio se soma a uma série de ocasiões em que o governo Bolsonaro se portou de maneira condenável em relação ao regime nazista. “Agride a memória de vítimas do Holocausto e ofende a sensibilidade de sobreviventes”, disse Schlesinger, na época
O episódio ocorreu poucos dias após o ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, ser criticado por várias organizações judaicas por comparar a quarentena gerada pelo novo coronavírus aos campos de concentração.
Apologia ao nazismo na Cultura
Em janeiro do mesmo ano, o então secretário Especial da Cultura, Roberto Alvim, foi demitido após divulgar um vídeo com falas semelhantes a um discurso do ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels.
Na ocasião, Roberto Alvim falou que se trata de uma “coincidência retórica” e em seguida, disse que “a frase em si é perfeita”.
A frase que havia sido dita por Alvim foi: “A arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional. Será dotada de grande capacidade de envolvimento emocional e será igualmente imperativa, posto que profundamente vinculada às aspirações urgentes do nosso povo, ou então não será nada”, disse o brasileiro.
Após a repercussão negativa gerada nas redes sociais devido à semelhança com uma fala de Goebbels, Alvim declarou que colocou seu cargo à disposição para “proteger” Bolsonaro. “Tendo em vista o imenso mal-estar causado por esse lamentável episódio, coloquei imediatamente meu cargo a disposição do Presidente Jair Bolsonaro, com o objetivo de protegê-lo”, escreveu Alvim em sua página no Facebook.
O atual secretário especial de Cultura do governo federal, Mário Frias, assim como Araújo, também comparou as medidas de combate à pandemia impostas por governadores e prefeitos ao Holocausto, em março de 2021.
Em uma publicação no Twitter, o ex-ator Frias reproduziu um trecho do filme A Lista de Schindler (1993) que mostra trabalhadores judeus sendo assassinados por tropas nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
Nas cenas, as vítimas aparecem argumentando que eram “trabalhadores essenciais”, mas os carrascos nazistas ignoram os apelos. No fim do vídeo, aparece uma mensagem em português: “Por medo, estamos permitindo políticos decidirem quem é essencial e quem não é. Cuidado. Seu trabalho é essencial. Você é essencial.”
“O setor de eventos clama para poder levar o pão para dentro de casa, para poder sustentar a própria família. Até quando um burocrata arrogante irá dizer que ele não é essencial?”, completou Frias numa mensagem que acompanhava o vídeo.