
Uma rajada curta de oito tiros varou o corpo e se alojou na parede de barro batido. Era uma sórdida repetição do que ocorrera há poucos minutos no cômodo ao lado. As balas, o fuzil M-2, as mãos do sargento que o segurava, marcariam e estariam marcadas para sempre na história da América Latina e do mundo. Há 54 anos aquele corpo caído, com os pulmões cheios de sangue, era o signo final da vida de Ernesto Che Guevara.
Pouco antes do assassinato, Félix Rodríguez, agente cubano da CIA e veterano da Invasão da Baía dos Porcos, olhou nos olhos do homem estropeado no chão com aparência de mendigo e declarou: “Quero falar com você”. Che respondeu prontamente: “Ninguém me interroga.” Foi Félix quem deu a ordem para que o sargento Mario Terán acabasse com Che, disparando abaixo da cabeça, para que parecesse que tivesse morrido em combate. Brandindo seu fuzil, o sargento reticente ouviu do homem que fuzilaria: “Aponte bem. Vai matar um homem.”
A tese da “morte em combate” fora a versão oficial, mas camponeses da região de La Higuera testemunharam ter visto Che caminhando por quilômetros até a escola onde seria morto. Só semanas depois o general e presidente René Barrientos confessaria: tinha ordenado a morte do guerrilheiro heróico.
A perseguição ao homem, que havia chegado à Bolívia 11 meses antes sob o disfarce de um uruguaio de meia-idade chamado Adolfo Mena González, foi realizada por Rangers bolivianos, especialmente treinados por boinas verdes das Forças Especiais do Exército dos Estados Unidos para a guerra irregular, que fizeram questão de exibir seu cadáver como um troféu para que servisse como lição. “Toda nossa ação é um grito de guerra contra o imperialismo”, escreveu Che.
“Em qualquer lugar em que nos surpreenda a morte, que seja bem-vinda, contanto que ele, nosso grito de guerra, tenha chegado a um ouvido receptivo e outra mão se disponha a empunhar nossas armas”. O efeito do espetáculo fora o contrário do previsto: a morte do guerrilheiro chegara a ouvidos, olhos, mãos, e Che tornou-se um mito global.
Ao fim de sua vida, encerrada a 2 mil quilômetros de onde nasceu e a quase 5 mil de onde triunfou, Che já havia passado por dezenas de países. Como viajante, passou por Chile, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Panamá e Miami. Viajaria depois também pela Bolívia, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador e Guatemala, onde testemunharia o golpe contra o presidente Jacobo Árbenz.
As viagens de Che
As viagens, nas palavras de Che em carta para uma tia, possibilitaram-no “passar pelos domínios da United Fruit Company” e constatar o infortúnio compartilhado de tantos países latino-americanos. De lá partiu para o México, onde conheceria Fidel e se jogaria à tarefa de libertar Cuba.
Como funcionário do governo revolucionário de Cuba, depois da vitória, o agora cubano-argentino passou por dezenas de nações da África, Ásia e Europa. Como combatente, além de Cuba e Bolívia, esteve também no Congo, convencido de que naquele continente estava o elo fraco do imperialismo.
Ficou sete meses, e mesmo frente aos problemas apontados – falta de unidade dos combatentes congoleses, indisciplina das lideranças e falta de apoio internacional – Che considerou enviar para casa os combatentes cubanos e seguir no Congo. Foi convencido a retornar, e anotou a “a história de um fracasso”, em Passagens da Guerra Revolucionária.
Luta contra o imperialismo
Do “elo fraco do imperialismo”, Che se lançaria ao ponto estratégico latino-americano. Registrara dez anos antes, enquanto ainda lutava na Sierra Maestra: “Eu tenho um plano. Se um dia eu for levar adiante a revolução no continente, me instalarei na selva na fronteira entre a Bolívia e o Brasil. Conheço a localidade muito bem porque estive lá como médico. De lá é possível botar pressão em três ou quatro países e, se beneficiando das fronteiras e das florestas é possível trabalhar as coisas para nunca ser pego.”
A teoria do foco de Che predicava envolver os Estados Unidos em uma luta de frentes diversas. Criar “um, dois, mil Vietnãs” significaria dividir a atenção do império; na Bolívia, o estabelecimento do foco guerrilheiro levaria, mais cedo ou mais tarde, a uma intervenção norte-americana. O foco boliviano treinaria e apoiaria a criação de outros focos no Peru, Argentina, Brasil e Paraguai, criando um cenário de “efeito dominó” no continente.
O foco se iniciou em uma fazenda de Ñancahuazú, mas com várias debilidades. A luta que deveria durar entre sete e dez anos durou somente alguns meses. A base do foco, na fazenda, não estava tão isolada quanto se previa; a chegada dos guerrilheiros atraía muita atenção.
No dia 31 de dezembro de 1966, Mario Monje visitou o acampamento e estabeleceu novas condições. “A conversa com Monje começou com generalidades, mas logo chegou às suas premissas fundamentais, estabelecidas em três condições básicas:
1) Ele renunciaria à liderança do partido, mas obteria do partido ao menos sua neutralidade [sobre a guerrilha] e conseguiria quadros para a luta.
2) A direção político-militar corresponderia a ele enquanto a revolução estivesse no âmbito boliviano.
3) Ele seria responsável pelas relações com outros partidos sul-americanos, conseguindo deles uma posição de apoio aos movimentos de libertação“, anotou Che em seu diário.
O cubano-argentino respondeu que o primeiro ponto ficava a critério de Monje, como secretário do partido, mas que “considerava um tremendo erro sua posição. Era vacilante, buscava acomodar e preservava o nome histórico daqueles que deviam ser condenados por sua posição manca”.
Também não se opôs ao terceiro ponto, ainda que considerasse condenado ao fracasso, naquela altura, convencer outros partidos comunistas da região da viabilidade da guerrilha. Mas negou o segundo ponto, que “não podia aceitar de nenhuma maneira. O chefe militar seria eu e não aceitaria ambiguidades sobre isso. Aqui a discussão estancou e girou em um círculo vicioso.” O Partido Comunista Boliviano se recusaria a apoiar a guerrilha, e a falta de recrutas se arrastaria durante toda a experiência.
Além disso, os mapas e as observações sobre o terreno que o intelectual francês Régis Debray havia fornecido estavam errados. O foco teve de explorar por si só o terreno, em uma marcha iniciada no começo de 1967, que deveria endurecer as tropas, obter conhecimento do terreno e fazer os primeiros contatos com os escassos camponeses da região.
Mas a marcha foi frustrante. Cada vez mais, ficava evidente que o preparo físico das tropas – incluindo Che – não era suficiente. Os mapas de Debray eram quase inúteis, e a falta de comida os obrigou até a matar alguns de seus próprios cavalos.
A dissensão e as discussões eram crescentes entre a tropa, e os encontros com os camponeses não tinham o efeito planejado; o contato era difícil, porque falavam Guaraní na região, e a maioria deles tinha há pouco conquistado suas terras por meio de uma reforma agrária limitada do governo.
As primeiras deserções, que levariam às autoridades descobrir o que se passava naquela estranha fazenda, viriam logo. A rede logística e de inteligência também seria comprometida com a apreensão de informações no carro da mítica guerrilheira Haydée Tamara Bunke (Tania). Na volatilidade daquela conjuntura, era combater ou desistir, e a guerra foi lançada antes do previsto.
As primeiras ofensivas conseguiram vitórias, mas em março o presidente René Barrientos já havia feito seus primeiros contatos solicitando a ajuda que Che previra para anos mais tarde, e que levaria a seu fim. O foco não teve tempo.
Legado vivo
Che se foi, mas seu legado, ao contrário do que diz o presidente de extrema direita do Brasil Jair Bolsonaro, segue bem vivo. Até o ex-sargento Mario Terán, responsável por seu fuzilamento, foi alcançado por ele: décadas depois do episódio que marcaria sua vida para sempre, suas vistas começaram a se apagar sob a branca catarata, um reflexo metafórico do que o sargento tentou fazer ao longo de toda sua vida após seu encontro final com Che: esquecer, desaparecer.
A operação que recuperou a difusa visão do ex-sargento foi realizada por médicos cubanos em missão na Bolívia. Talvez isso explique a insistência com a qual seus companheiros foram expulsos daqui.
“Nasci na Argentina; não é segredo para ninguém. Sou cubano e também sou argentino, se não se ofenderem os ilustríssimos latino-americanos, me sinto tão patriota da América Latina, de qualquer país da América Latina, como qualquer outro e, no momento em que fosse necessário, estaria disposto a entregar minha vida pela libertação de qualquer um dos países da América Latina, sem pedir nada a ninguém, sem exigir nada, sem explorar ninguém”
Che Guevara, em discurso em 1964, na ONU, depois de ser provocado por um representante nicaraguense por seu sotaque.
“Espero de qualquer maneira que o representante da Nicarágua não tenha encontrado o sotaque norte-americano em minha fala, porque isso sim seria perigoso”.
Símbolo de luta no mundo
Após sua morte, a lendária fotografia de Che, após ser capturada, cruzou as fronteiras. Hoje é mais do que uma imagem, é a identificação de uma luta comum em diferentes regiões do planeta. Entre as centenas de imagens que o fotógrafo cubano Alberto Díaz, conhecido como Korda, capturou com sua câmera durante a Revolução Cubana, havia uma que, dentre tantas imagens de destaque, se tornou uma lenda: a foto histórica de Che, tirada há 60 anos, a 5 de março de 1960.
A imagem foi batizada por seu autor como “Guerrilha Heroica” e é considerada pelos críticos como um dos dez melhores retratos fotográficos de todos os tempos. É também, até hoje, a fotografia mais reproduzida da história.
Korda captou o olhar sereno e firme de Ernesto Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana, em 5 de março de 1960, enquanto o guerrilheiro assistia à procissão fúnebre das vítimas de La Coubre, que morreram de um ataque explosivo de a CIA americana na ilha.
A imagem foi publicada em 1961 e ficou famosa em 1968, após a morte do Che na Bolívia, quando o editor italiano Giangiacomo Feltrinelli transformou em pôsteres várias fotografias de Korda, incluindo a “Heroic Guerrilla”, para levá-las à Europa e incentivar a luta dos movimentos sociais de 1968 naquele continente, onde a imagem foi catapultada.
O impacto da fotografia foi tal que rapidamente se espalhou pelo mundo, tornando-se um ícone da luta dos povos pobres. Korda era um fotógrafo de esquerda que compartilhava os princípios da Revolução Cubana, portanto, ele nunca cobrou por direitos autorais.
Símbolo capturado pelo capitalismo
A única vez em que ele assumiu a responsabilidade pela foto foi proibir seu uso por uma marca de vodka. Segundo Korda, muitos anos depois, a foto foi tirada em apenas um minuto e meio, porque o guerrilheiro estava naquele momento com o resto de seus companheiros, atrás de Fidel Castro, e apenas um momento olhou para ver a passagem do funeral.
“Fiquei impressionado com o seu olhar de pura raiva pelas mortes que ocorreram no dia anterior”, disse o artista cubano, que não hesitou em retratá-lo com suas lentes duas vezes: uma horizontal e outra vertical. O que ele decidiu usar foi o primeiro, porque no segundo a cabeça de alguém cutucou o ombro de Che, ele disse.
O uso do rosto de Che como objeto comercial foi uma resposta dos empresários à representatividade e força da imagem entre os povos. Para neutralizar o ícone revolucionário em que a imagem se tornara, o capitalismo a incorporou como parte de sua oferta ao consumidor, estampando-a em diferentes trajes, como camisetas e bonés, além de outros itens e objetos do cotidiano.
No entanto, a estratégia de exploração comercial não diminuiu sua verdadeira essência e, até hoje, a imagem está ligada a lutas sociais e apenas causas da esquerda no mundo. O rosto é uma forma de identificação e reconhecimento popular, seu significado não apenas abrange a luta cubana, mas também simboliza tudo o que engloba o conceito.
Che e suas diferentes facetas
Revolucionário, guerrilheiro, comandante militar, chefe de Estado, Ministro da Industria em Cuba, médico, escritor, jornalista, fotografo, dentre tantas outras funções que ocupava, foi a síntese de um homem de pensamento e ação que transcendia e influía a história latino-americana. Uma dessas grandes virtudes foi o de colocar como necessidade histórica as mudanças revolucionárias em prol do socialismo.
Cuba, na década de 1960, também enfrentava a ofensiva externa através de um tipo de capitalismo mais competitivo, mais predatório, centralizado e poderoso: a era do capital monopolista. E por isso mesmo, um dos desafios da Revolução, seria planejar a economia nacional com métodos de condução econômica no mesmo patamar da evolução da economia mundial, porém, no âmbito inverso, trazendo resultados concretos para a vida da população cubana mesmo com todas as imposições do bloqueio econômico e político estadunidense.
Che buscou estudar e compreender os fundamentos e o funcionamento das determinações do avanço do capitalismo mundial, criando, entretanto, uma proposta radicalmente oposta com base numa concepção humanista da economia, tendo o ser humano como centro. Assim, valores como a solidariedade, a justiça social, a cooperação entre os trabalhadores, a consciência do papel histórico de cada cubano e cubana para com o destino da sociedade socialista eram centrais para a vitória do socialismo em Cuba.
Herança do pensamento econômico de Che, transformado em legado, e dos demais revolucionários membros do governo cubano, ainda hoje é possível evidenciar que no país não existe nenhuma criança cubana dormindo nas ruas e nenhuma família passando fome. Para além dos direitos básicos de acesso comum, todo cubano/cubana tem acesso ao melhor da arte, de forma gratuita: balé, concerto, musicais, teatros, cines, shows, entre tantos outros.
Criou-se um tipo de desenvolvimento econômico voltado para atender as necessidades básicas materiais coletivas, mas também às necessidades do espírito, da mente criadora e transformadora, da realização plena enquanto ser que transcende a produção e reprodução da vida (na forma da sobrevivência). Cuba é uma sociedade criadora e consumidora de uma arte/estética que se pauta pela essência cultural da existência de seres humanos.
O Humanismo em Che é, portanto, o Humanismo revolucionário, marxista (no âmbito da filosofia da práxis na teoria e ação revolucionária), que se verifica e se expressa na concepção do papel de novos seres humanos na construção da revolução e na sua ética comunista.
O núcleo central do pensamento do Che se formula no contexto da madurez da transição socialista em Cuba. Portanto, alguns germens de seu pensamento perpassam suas obras, concebem a luta pelo socialismo desde a questão estratégica do poder em íntima relação com as diversas realidades do mundo, seja o sistema capitalista mundial e suas contradições internas, a luta dos povos por sua libertação, o campo socialista no mundo e todas as inter-relações que sustentam esse contexto.
- Crê na possibilidade de eliminação da exploração do trabalho do homem pelo homem, na eliminação da exploração de um país sobre outro (jugo imperialista), na eliminação da opressão de gênero e de classe.
- Concebe complexa relação entre economia, política, arte, ética, estética, educação, ideologia, justiça.
- Concebe interrelação permanente entre teoria e pratica e prática e teoria.
- É um filósofo da práxis. Aposta na não separação entre política e economia para a construção do socialismo.
- Também não separa produção manual e intelectual do trabalho para a reprodução da vida.
Assim mesmo o próprio Che era Ministro de Economia, onde assumia tarefa intelectual e fazia trabalho voluntário no corte de cana-de-açúcar com os camponeses.
Exemplo raro de humanismo, internacionalismo. Foi também teórico sobre o papel do quadro revolucionário, sobre um quadro de novo tipo, que fosse a coluna vertebral da revolução, com capacidades impares sobre o papel do quadro dirigente político; da juventude comunista, de como deveria ser a juventude comunista; do homem e da mulher emancipada, do método de direção, de médico e comandante do povo cubano entre tantos outros exemplos.
Privilegiado, o próprio meio proporcionou as reais condições para o desenvolvimento de um quadro revolucionário da grandeza de Che: atuou ao lado, ombro a ombro de mulheres e homens de grandeza revolucionária extraordinária, como Fidel, Camilo Cienfuegos, Haydée Santamaria, Célia Sanchéz, Raul Castro, Vilma Espín, e tantos outros que formavam a vanguarda de combatentes, (junto com a imbatível aliança operária e camponesa em Cuba), e também lutou ao lado de tantos outros valorosos combatentes na causa socialista em outros países e continentes.
Estes lutadores e lutadoras construíram as circunstâncias históricas necessárias, foram capazes de brindar a história humana com belos exemplos de luta por sua libertação. Che foi um destes construtores das mais belas conquistas da revolução socialistas! Seus exemplos ecoam sobre novas gerações e convocam-nas à luta anti-imperialista, anticapitalista, antifascista, rumo ao socialismo.
Com informações da Revista Ópera, Brasil de Fato e MST