
Esta é a quarta matéria da série especial Experiências Socialistas. Neste texto, buscamos falar um pouco mais sobre o socialismo na República Popular Democrática da Coreia (RPDC), chamada no ocidente de Coreia do Norte. O país está em constante mudanças intensas nos cenários políticos, econômicos e sociais. Com a divisão no período da Guerra Fria entre Coreia do Norte e do Sul, a primeira ganha destaque nos conflitos geopolíticos, em função do seu programa nuclear, estilo de liderança militar e mistério para o resto do mundo.
A razão dessa impressão que a sociedade ocidental tem sobre a RPDC se dá justamente por causa da falta de informações verdadeiras ou confiáveis sobre esse lugar, que é muitas vezes visto como “o país mais isolado do mundo” e “ditadura hermética”. Essa e outras visões negativas sobre o país são insistentemente difundidas pelos grandes veículos de comunicação com o objetivo de classificar o regime socialista da Coreia como “fracassado” e “pobre”.
Tudo que ouvimos ou vemos na TV, internet e revistas sobre a RPDC é assustador e um lugar tão estranho parece ser impossível de existir. Mas será mesmo que o país é dessa maneira que a mídia comercial noticia? Procuramos com essa reportagem mostrar como é a política do país e desvendar alguns dos mitos em torno de um dos países mais polêmicos do mundo.
Boa leitura!
Coreia do Norte: mistérios e guerra por soberania
Um país em guerra. Ao menos, tecnicamente, a Coreia do Norte vive sob um armistício acordado em 1953. Uma nação em uma península dividida em socialismo de um lado e capitalismo do outro. E tem um regime que busca autossuficiência, apesar da sua localização geográfica não facilitar. O país está cercado por China, Rússia, Japão e Estados Unidos, que se faz presente na base montada na Coreia do Sul.
A República Popular da Coreia (RPDC) é um país fechado que, apesar das inúmeras tentativas de invasão e domínio ao longo dos séculos, resiste. Não sem dificuldades e mortes. Muitas mortes.
Do lado de fora, notícias sobre exercícios militares. Além de inúmeros relatos sobre modos, costumes e subserviência ao regime. No geral, em tom jocoso e com fontes difíceis de serem confirmadas.
Na última semana, novamente notícias sobre o tão demorado fim da guerra entre as nações do Norte e do Sul foram divulgadas. Mesmo após os recentes exercícios militares da RPDC.
Paulo Visentini, professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em entrevista à TV Cultura, observa como um país “tão pequeno” aparece no mundo de um modo desproporcional ao seu território e população. São 25,6 milhões de habitantes em uma área de 120,5 mil quilômetros quadrados.
“Evidentemente, é um país em desenvolvimento e enormes dificuldades tendo em vista mais de meio século de embargo e tendo que gastar uma grande soma de recursos para a sua defesa”, disse.
Visentini esteve no país em 2013 e é autor do livro ‘Revolução Coreana’, publicado pela Fundação Editora Unesp.
“Por que um país sofre tal nível de caricaturização? É mais do que crítica. É realmente levado ao nível do ridículo. Você tem a impressão que vai encontrar um país de zumbis, mortos de fome, que não pensa, que não sabe argumentar. Obviamente, não é nada disso.”
Paulo Visentini
Até para um pesquisador experiente, há dificuldade para encontrar fontes confiáveis sobre o país, afirma.
Tudo agravado ao fato de a Coreia estar cercada por grandes potências e os Estados Unidos, presentes ali militarmente no lado Sul da península.
“Há uma tradição antiga, de mais de mil anos, de busca de autonomia. Como não ser dominado pelos japoneses, chineses e, depois, pelos russos e estadunidenses”, explica.
A busca pela autonomia é de tamanha importância que extrapola muito o campo físico e material.
“Eles fizeram o próprio alfabeto para se diferenciar do Japão”, destaca Visentini.
Socialismo Juche
O regime se baseia na ideia Juche, um conceito autônomo desenvolvido pela própria RPDC para encontrar valores intermediários entre os sistemas comunistas e socialistas, afirmando o seu posicionamento enquanto república.
O pensamento Juche traz à tona um forte sentimento de nacionalismo e culto à personalidade do grande líder, o presidente da RPDC, atualmente, Kim Jong-un.
A RPDC foi fundada em um período de ascensão do movimento revolucionário, mais precisamente em 1948, um ano antes da fundação da República Popular da China. Assim como nas demais revoluções que triunfaram na Ásia, a defesa da dignidade nacional estava em primeiro plano.
Dominação japonesa
O Japão conseguiu invadir a Coreia, que ainda era uma só nação, no início do século 20. O que perdurou até o fim da Segunda Guerra Mundial. Época em que até os nomes coreanos eram trocados por outros em japonês.
O que contribui, de acordo com Visentini, para uma maneira “cheia de sutilezas” de lidar com o exterior e afirmar sua autonomia.
A dominação japonesa era brutal. Inúmeras coreanas foram levadas para servirem sexualmente aos oficiais japoneses. Algumas das quais estão vivas e cobram até hoje o reconhecimento dos abusos e violências que sofreram.
Traços da ocupação japonesa
O professor Elias Jabbour, doutor e mestre em geografia pela Universidade de São Paulo (USP), e que foi à Coreia do Norte em 2009, ressalta que “a tentativa de negar os povos é uma marca da dominação do Japão na Ásia”.
“Outro traço é que a ocupação japonesa foi seguida de processos de industrialização. Os coreanos herdaram uma base industrial e uma rede de transportes relativamente desenvolvidas. Duas faces da mesma moeda.”
Elias Jabbour
Do ponto de vista intelectual, observa o Jabbour, o corpo técnico ‘herdado’ do Japão acabou por conduzir o processo de industrialização do país.
Além disso, com a derrota do Japão em 1945, o país foi obrigado a se retirar da Coreia. Comitês nacionais populares se espalharam pelos dois lados da península. A divisão entre Norte e Sul teria sido traçada por dois militares estadunidenses que teriam batido o olho no mapa e demarcado o paralelo onde começava cada nova Coreia.
“A geopolítica acabou moldando aquela região: o Norte como protetorado soviético e no Sul os EUA acabaram dominando e impondo um regime muito reacionário”, explica Jabbour.
Guerra entre Coreias
Pouco depois, entre 1950 e 1953, as duas Coreias entraram em guerra – esta que dura até hoje. O armistício assinado entre os países foi o primeiro, desde a independência dos Estados Unidos (1776), que os estadunidenses assinaram. Ou seja, foram reconhecidamente derrotados.
Durante a guerra, no entanto, o professor Elias Jabbour observa que ao lado Norte da península foram lançados o equivalente a dez bombas nucleares testadas em Hiroshima e Nagasaki.
Apesar disso, o país, apoiado à época pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) conseguiu realizar uma revolução agrícola e desenvolver sua indústria química. O que, de acordo com Jabbour, garantiu uma sobrevida ao país após o processo de decadência que começou a ruir a URSS.
“Quando o milagre coreano da parte Norte começa a refluir, a do Sul começa a se fortalecer. O bloco socialista era economicamente mais frágil que o capitalista.”
Elias Jabbour
Tragédia coreana
Após o fim da União Soviética, a situação ficou extremamente difícil para a Coreia do Norte. 80% do seu comércio exterior desapareceu. A dependência do bloco comunista levou a fome extrema à população.
Leia também: China, potência em ascensão, é uma nação imperialista?
Em 1994, ano da morte de Kim Il-Sung, uma enchente devastadora seguida de uma forte seca devastaram o país. A estimativa é que mais de 250 mil pessoas tenham morrido. Ele foi sucedido por seu filho Kim Jong-Il.
E, em meio a tantos conflitos e desastres naturais, o exército norte-coreano teve liberdade para fazer negócios.
“Isso criou grupos de pessoas influentes e poderosas”, pondera o professor Paulo Visentini.
Kim Jong-un
Kim Jong-Un não era sucessor legítimo da dinastia Kim já que era o terceiro na linha sucessória. No entanto, seu irmão mais velho não era considerado apto para o assumir o poder, já que havia sido preso no Japão por andar com um passaporte falso.
Em 2011, após morte de Kim Jong-Il, Kim Jong-Un tornou-se líder da Coreia do Norte. Posto em que se mantém.
Dependência energética
O arsenal bélico atômico na Coreia, observam os especialistas, se deve tanto à defesa quanto à questão energética. O país não tem matrizes que garantam energia suficiente. Com os embargos sofridos – 200 vezes maiores do que os impostos a Cuba, de acordo com Elias Jabbour -, o país enfrenta enormes dificuldades para acessar os insumos necessários.
Mesmo com a inauguração de uma usina hidrelétrica no país há pouco tempo, ela não é suficiente para garantir eletricidade para o lado norte da península à noite.
Paulo Visentini observa que a questão bélica e nuclear é tão crucial ao país a ponto de ter sido incluída na Constituição de 2012.
Mitos da dominação
Apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelos norte-coreanos, Visentini afirma que a economia voltou a crescer, inclusive com a criação de zonas especiais que contam inclusive com empresas sul coreanas e ocidentais.
“A ideia é melhorar as condições de vida mais imediatamente, mas é uma modernização sem reforma”, afirma ao se referir ao socialismo Juche.
Embora sob regime socialista, existe atividade privada no país.
“Ao contrário do que muitos pensam, há uma economia privada na Coreia, mas que não é legitimada legalmente. Você vê carros de luxo na rua dirigidos por alguém que comprou o carro, mas que está em nome do Estado. As pessoas conhecem sim notícias do mundo. Você encontra as crianças na rua com camisetas do Mickey Mouse. A cidade de Pyongyang é futurística, tem pouco trânsito, muitos canteiros e uma urbanização monumental.”
Paulo Visentini
Reação anticolonialista
Em 2017, o filósofo marxista italiano Domenico Losurdo, afirmou em entrevista a Nova Cultura, que toda a história da Guerra Fria foi, ao mesmo tempo, uma história da luta entre a emancipação anticolonial e a reação colonialista.
“A Coreia foi protagonista de uma grande revolução anticolonial, e, é claro, os Estados Unidos, sob todas as formas, tentou sufocar esta revolução anticolonial. Do outro lado, não podemos nos permitir ignorar os erros dos líderes da Coreia do Norte. Eles estão certos em temer ser derrubados como Gaddafi ou Saddam Hussein foram derrubados. Nesse sentido, o principal responsável pela situação extremamente perigosa na Península Coreana são os Estados Unidos, quanto a isso, não restam dúvidas.”
Domenico Losurdo
Mas, à época, ele avaliou também que “talvez a resposta da liderança norte-coreana não seja sempre a correta, porque agora os Estados Unidos e o Japão têm o pretexto de militarizar toda a península ao instalar o aparato antimísseis, e neste caso os Estados Unidos e o Japão têm o pretexto de preparar a guerra contra a China também”.
Paz entre as Coreias?
Em seu discurso na 76ª Assembleia Geral da ONU na terça-feira (21), o presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, propôs anunciar o fim da guerra na península da Coreia com apoio dos Estados Unidos e China.
“Apelo para a retomada do diálogo entre duas Coreias e também entre os EUA e a China”, disse o presidente sul-coreano.
“Hoje exorto de novo a comunidade internacional a mobilizar suas forças para a declaração do fim da guerra na península da Coreia e proponho que as duas Coreias e os EUA ou as duas Coreias, os EUA e a China se reúnam e declarem que a guerra na península da Coreia terminou”, declarou.
Moon afirma que se Norte e Sul anunciarem o fim da guerra, isso permitirá progresso na desnuclearização da península
Moon insistiu várias vezes durante sua presidência em uma declaração formal do fim da guerra, incluindo em seu discurso na ONU no ano passado.
O mesmo foi defendido pelo presidente dos EUA, Joe Biden, na ONU.
Em seu discurso, Biden defendeu “um avanço concreto para um plano com obrigações tangíveis” poderia “aumentar a estabilidade na península e na região e também melhorar as vidas de pessoas na República Popular Democrática da Coreia”.
Na sexta-feira (24), a Coreia do Norte deu sua resposta.
‘Políticas hostis’
Kim Yo-jong, a irmã do líder norte-coreano Kim Jong-un, pediu nesta sexta-feira (24) à Coreia do Sul que abandone as “políticas hostis” contra o governo da Coreia do Norte.
Em declarações publicadas pela agência oficial KCNA, a irmã e assessora de Kim Jong Un, Kim Yo -jong, disse que formalizar a paz é uma “ideia admirável”, mas pediu ao Sul que abandone a atitude hostil em primeiro lugar.
Fazer estas declarações com “padrões duplos, preconceitos e políticas hostis ainda em vigor não faz nenhum sentido”, disse Kim Yo-jong.
Ela se mostrou aberta a melhorar as relações com a Coreia do Sul caso o país vizinho mude de atitude.
A troca de declarações acontece em um momento de aumento da tensão na península: a Coreia do Norte fez dois testes balísticos este mês, e a Coreia do Sul anunciou o lançamento, com sucesso, de mísseis balísticos a partir de um submarino, parte do desenvolvimento de suas capacidades defensivas.
Com informações do Sputnik Brasil, BBC, FA – Brasil – Associação de Amizade com a Coreia, Centro de Estudos da Política Songun, Centro de Estudos da Ideia Juche, Revista Mundo Socialista e G1