
O impacto da pandemia da Covid-19 está indo além das milhares de vítimas fatais e da grave crise econômica que já afeta mais de 60% das famílias com crianças nos Estados Unidos.
Um estudo da Fair Health, publicado em julho, afirmou que o preço médio do tratamento da Covid-19 é de US$ 34.662 na faixa etária de 20 a 30 anos e de até US$ 45.683 no grupo de idade entre de 50 e 60 anos.
Para dimensionar o impacto, é preciso multiplicar os valores pelos números da pandemia, que está iniciando uma terceira onda de descontrole. Nos dois picos que aconteceram até agora (abril e julho), houve mais de 60 mil pessoas internadas ao mesmo tempo. Agora são 40 mil e o número está crescendo rapidamente. Mais de 220 mil pessoas já morreram no país.
No limite
A saúde nos Estados Unidos, exceto para os idosos e os muito pobres, não é pública como no Brasil. Os cidadãos precisam de um seguro particular para ter acesso a um médico ou pagar pelo tratamento do próprio bolso. E a grande maioria dos hospitais dos Estados Unidos são empresas que vivem do que cobram dos clientes e das seguradoras.
A pandemia, no entanto, levou ao limite as frágeis costuras de um sistema em que os doentes não são doentes, mas consumidores, e os médicos não são médicos, mas prestadores de serviços.
Contas exorbitantes e medo
Nesse contexto, os pacientes não confiam das ajudas federais, e com razão. Um exemplo é o caso de Carbery Campbell, uma professora que sentiu sintomas da Covid-19 depois de voltar para a Flórida, vinda da Espanha. Foi ao pronto-socorro, ficou lá durante duas horas e depois recebeu uma conta de US$ 6.545. Quando ligou para dizer que supunha que o teste era gratuito, deram-lhe US$ 30 de desconto. O hospital queria cobrá-la por tudo o que não fosse estritamente o teste da Covid-19.
Isso pode acontecer com quem tem seguro e acredita que está coberto. Andrés Martínez, um imigrante sem documentos de 31 anos que vive em Los Angeles e trabalha em um estúdio de tatuagem, nem pensa em ir ao médico. Nem sequer sabia que podia. “Não irei ao médico se não estiver totalmente seguro de que é Covid-19”, diz, temendo o custo.
Em outras palavras, a pandemia obrigou os Estados Unidos a realizar uma espécie de experiência de saúde universal, mas limitada a uma única doença. E essa experiência está dividindo o debate sobre o sistema sanitário.
O depoimento de Campbell está em uma associação chamada Patients Rights Advocate, que luta por maior transparência nos preços dos hospitais. Sua diretora, Cynthia Fischer, os chama de “o cartel”. “A opacidade permite que hospitais e seguradoras façam acordos secretos nas nossas costas e nos cobrem a mais. É uma fraude que se comete todos os dias”, diz ela. Fischer pressionou a Casa Branca para aprovar uma ordem executiva exigindo transparência de preços. Donald Trump o fez no ano passado e a ordem entrará em vigor em 2021.
Promessas de Trump
Essa é a única coisa concreta que se saiba que Trump fez pela saúde, e não afeta a pandemia. Na realidade, o coronavírus obrigou os republicanos a ampliar de fato a cobertura pública. Até o momento, os únicos que experimentaram como o Governo ajuda com os gastos com saúde são as 20 milhões de pessoas que a reforma da saúde de Obama permitiu que tivessem acesso a um seguro de saúde particular com preços subvencionados.
Os republicanos, contrários à medida, passaram seis anos prometendo eliminar o Obamacare. O programa é tão popular que não tiveram sucesso mesmo quando tinham a presidência e a maioria nas duas Câmaras.
Por exemplo, uma das disposições mais populares do Obamacare é proibir as seguradoras de recusar clientes por doenças anteriores. É um problema que afeta cerca de 130 milhões de pessoas. É tão importante que Trump repete continuamente, em todos os comícios, que vai “proteger as pessoas com doenças anteriores”, mas não apresentou um plano para fazê-lo em quatro anos e ninguém sabe ao certo como isso será feito sem o Obamacare.
Mais gastos
Número um no ranking de países em gastos com a saúde – o equivalente a 17,7% do PIB ou 3,6 trilhões de dólares em 2018 –, o alto percentual empenhado anualmente não garante acesso a cuidados médicos a pelo menos de 28 milhões de pessoas, quantidade estimada da população sem acesso a um plano de saúde.
Entre aqueles que o têm, a maioria recebe seu plano de saúde por meio do seu emprego. Mas a pandemia destruiu 22 milhões de vagas, dos quais apenas metade foi recuperada até agora. Um estudo recente do The Commonwealth Fund estimou que cerca de 14 milhões de pessoas foram temporariamente deixadas qualquer cobertura em razão da crise sanitária.
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Mesmo os que possuem o plano afirmam que muitas coparticipações nos pagamentos, franquias e exceções, na prática, representam um impacto financeiro caso a hospitalização seja necessária. Joe Biden propõe ampliar os critérios de entrada no Medicare – um plano inferior ao “Medicare para todos” proposto pela esquerda do seu partido – e fazer um plano de saúde público opcional para quem não pode pagar um particular.
Destruição da saúde
Diante do cenário, ficou claro que a pandemia não está apenas destruindo vidas financeiramente, mas também está destruindo a economia dos hospitais. De acordo com um estudo da Universidade da Carolina do Norte, 15 hospitais rurais nos Estados Unidos já fecharam este ano, 11 deles desde março.
A razão é que eles estão se dedicando ao coronavírus e não podem cobrar por outras coisas. “As pessoas estão evitando ir aos hospitais para não se infectarem e não receberem uma conta, e com razão”, explica Arturo Vargas Bustamante, professor de Política Sanitária da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA).
“Os hospitais recebem mais pelos tratamentos seletivos”, explica Vargas. Isso é o que as pessoas não estão fazendo. Porque não querem ir ao médico e porque os leitos têm de estar livres para a pandemia. “Com a pandemia, têm grande demanda, mas com a subvenção federal não estão recebendo o valor normal. Seus gastos não são totalmente reembolsados quando todos os seus pacientes deixaram de ir ao hospital”.
Isso é o que explica que os hospitais tentem cobrar dos pacientes por qualquer coisa que possam argumentar que não está relacionada com o coronavírus. “Por exemplo, se você foi ao hospital de ambulância e tem Covid-19, te cobram (o transporte). Mas se você foi porque achava que tinha Covid e depois descobre que não tinha, te cobram”, explica Vargas.
Isso resulta em desconfiança em relação ao sistema, o que redunda nas dificuldades da indústria médica, aumentando cada vez mais as contradições do sistema de saúde.
Com informações do El País