
Sem Parlamento, com um Judiciário enfraquecido, acusações de repressão política e decretos presidenciais questionáveis, o Haiti se aproxima de uma cenário de incerteza, instabilidade e crise. Nos últimos dois dias, a nação sofreu uma tentativa de golpe de Estado e vem registrando assassinatos, denunciados pelas autoridades, após o afastamento de três juízes e a instalação de um governo paralelo – um coquetel político explosivo para um país com pouco mais de 11 milhões de habitantes.
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No centro do debate está o disputado mandato presidencial de Jovenel Moïse, que muito antes dos recentes acontecimentos já enfrentava protestos massivos contra seu governo, acusações de corrupção e críticas à crescente violência e ao poder dos grupos paramilitares. Ele, no entanto, segue apoiado pela comunidade internacional, especialmente pela administração dos Estados Unidos.
A oposição política, as organizações da sociedade civil, a federação dos advogados, religiosos e até membros do Judiciário determinaram o fim do governo de Moïse no último domingo (7), uma data simbólica, que marcava o aniversário da queda da ditadura.
Essas forças argumentam que recorrerão ao artigo 134-2 da atual Constituição, código que prevê a redução do mandato presidencial caso haja dúvidas relacionadas à contagem de votos. Representantes contrários a Moïse consideram que as eleições realizadas em 2016 foram uma continuação do pleito cancelado anteriormente, envolto em alegações de fraude.
Haiti “à beira da explosão”
No último dia 8 de fevereiro, uma mensagem divulgada pela Conferência Episcopal do Haiti (CEH) afirmou que o Haiti vive “uma situação de extrema dificuldade” e está “à beira da explosão”.
Segundo os bispos que assinam a mensagem, a vida diária da população é feita de mortes, assassinatos, impunidade, insegurança” que têm causado descontentamento “em quase todas as as partes do país”. Ao mesmo tempo, os religiosos reiteram que “ninguém está acima da lei e da Constituição nacional”; portanto, algumas questões como “estabelecer um conselho eleitoral provisório ou elaborar outra Constituição” só agravaram as tensões já existentes, levando o país a ser “totalmente inabitável”.
Juízes afastados
A leitura do governo, no entanto, é diametralmente oposta. O presidente alega que foi empossado em 2017 por um período de cinco anos, uma tese partilhada por outras organizações como as Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos.
Face a este cenário, a oposição desafiou Moïse e nomeou um governo de transição, liderado pelo juiz mais antigo do Tribunal de Cassação, Joseph Mécène, que, junto a outros cinco colegas do Poder Judiciário, pôs fim ao mandato presidencial.
Em resposta, o governo afastou, via decreto, três juízes, incluindo Mécène, a quem descreveu como “autoproclamado” e usurpador de cargos, fazendo uso de grave violação da Constituição e da lei.
Os demais magistrados forçados a deixar o cargo foram o Juiz Yviquel Debrézil, preso no domingo, junto com outras duas dezenas de pessoas, sob a acusação de conspirar contra a segurança interna do Estado. Além dele, também foi preso Wendelle Thélot, que em setembro passado impediu a posse do Conselho Eleitoral Provisório nomeado pelo presidente.
Embora as autoridades tenham justificado que não é a primeira vez que o Executivo afaste juízes antes do fim de seus mandatos, considerado vitalícios pelas leis em vigor, as organizações da sociedade civil alertam para o enfraquecimento do Poder Judiciário, em um momento em que o Parlamento está disfuncional, deixando o governo sem contrapesos.
Enquanto cresce a pressão contra o governo, manifestações prosseguem nas ruas. Embora em menor número do que nos últimos anos, elas tornaram-se mais radicais e recebem uma resposta policial violenta.
Tudo isto num ano em que Moïse propõe uma controversa alteração constitucional, longe de chegar a um acordo, e eleições gerais e legislativas, ingredientes propícios ao aumento da violência.
Uma longa crise
A situação no Haiti tem sido dramática há bastante tempo: em outubro de 2019, a população já havia tomado as ruas em protesto contra Moïse.
O clima de constante insegurança bloqueou as eleições programadas para janeiro de 2020 para renovar o Parlamento e levou o governo a agir por meio de decretos contínuos. A situação piorou ainda mais com a chegada da pandemia de Covid-19 que causou quase 12 mil infectados e 245 mortes, até o momento.
A tudo isso deve ser acrescentada a violência perpetrada por quadrilhas armadas, os chamados “esquadrões da morte” que semeiam terror por toda parte, em “um contexto de impunidade quase total”, como denunciou a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet.
Enquanto isso, o país se prepara para um triplo turno eleitoral: um referendo sobre a nova Constituição está previsto para 25 de abril, cujo rito ainda está sendo elaborado e é objeto de críticas tanto das forças da oposição quanto dos círculos próximos ao Chefe de Estado; eleições presidenciais e legislativas previstas para setembro, enquanto que as eleições administrativas estão previstas para novembro.
Com informações da Agencia Prensa Latina e Vatican News