
Nem mesmo a maior crise de saúde dos últimos tempos impediu que a articulação do Secretário Nacional de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, Rafael Câmara e da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, junto a parlamentares religiosos e conservadores, continuasse multiplicando proposições antiaborto no Congresso Nacional.
No primeiro semestre de 2021, enquanto a pandemia de coronavírus se agravava no Brasil, pelo menos 484 proposições legislativas sobre direitos sexuais e reprodutivos foram apresentadas. Os dados são do Centro de Estudos Feministas e Assessoria (Cfemea), que monitora a temática no Congresso Federal desde 1999. Ainda segundo informações fornecidas pelo Cfemea à Pública em primeira mão, ao menos 264 entre essas 484 são projetos de lei (PLs).
Segundo a Cfemea, a tendência de alta vem desde o início do governo Bolsonaro. Até 2018, o grupo monitorava 50 PLs sobre direitos sexuais e reprodutivos, considerados mais relevantes. Entre 2019 e 2020, mais 29 entraram no radar. Destes, 21 foram classificados como desfavoráveis aos direitos reprodutivos das mulheres, porque tentam estabelecer conceitos como “direito à vida desde a concepção”, “direito e estatuto do nascituro (feto)” ou aumentar penas para a interrupção da gravidez. Ou seja, de modo geral essas propostas visam criminalizar ainda mais o aborto, que é legal no Brasil só em casos de estupro, anencefalia do feto e quando a gestante corre risco de vida.
Penalização das mulheres
O pesquisador Rulian Emmerick acompanha um recorte ainda mais pontual: apenas propostas que falam diretamente sobre aborto. Em 2020, já em contexto de pandemia, ele diz que “13 dos 23 PLs sobre aborto apresentados no Congresso Nacional eram desfavoráveis aos direitos das mulheres”. Autor de livros sobre aborto, religião e direitos reprodutivos e professor de sociologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Emmerick afirma que, nos primeiros dois anos do governo Bolsonaro, a quantidade de propostas que tentaram criminalizar ainda mais o aborto foi “três vezes maior do que as favoráveis à descriminalização”. “Todos os 19 PLs apresentados em 2019 eram desfavoráveis”, destaca.
Em 2021, os projetos passaram a contar com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira, observa Masra Abreu, integrante do Cfemea, que participa do monitoramento do Congresso. Segundo ela, desde que assumiu o cargo, no início deste ano, Lira vem fazendo mudanças regimentais que fortalecem os deputados pró-vida e “inviabilizam qualquer reação de deputados pró-direitos, facilitando a tramitação de pautas do grupo do governo”, considera, referindo-se a iniciativas como o projeto que reduziu tempos de fala e restringiu discussões, apelidado de “PL da mordaça”. “Na Câmara dos Deputados, ainda há a composição desses parlamentares com a presidente da Comissão de Constituição e Justiça [CCJ], Bia Kicis (PSL-DF), que é aliada de Bolsonaro”, acrescenta.
Deputadas conservadoras puxam a fila antidireitos
A atuação das parlamentares mulheres na apresentação dos PLs que ameaçam direitos reprodutivos é maior, segundo o monitoramento da atividade legislativa. Em 2020, o pesquisador Emmerick contabilizou 12 dos 23 PLs como de autoria de mulheres. “Porém esse protagonismo esteve muito ligado a pautas desfavoráveis”, diz.
Para a cientista política Flávia Biroli, as pautas antiaborto “são usadas como palanque político e têm sido encampadas por parlamentares, homens e mulheres, em primeiro mandato, que aproveitaram a onda do bolsonarismo para se eleger”.
No estudo Triunfo das mulheres? A face feminina do populismo de extrema direita e do extremismo, publicado no início deste ano, Flávia fala como gênero passou a ocupar o centro do programa de governo de Bolsonaro ainda nas eleições de 2018 e afirma que, embora as posições conservadoras contra o direito ao aborto tenham feito parte das recentes disputas nacionais em 2010 e 2014, “esta foi a primeira vez que uma abordagem explícita antigênero e antifeminista foi enfatizada em termos mais gerais por um dos principais candidatos”. Entre os protagonistas dessas agendas estão mulheres conservadoras, que, especialmente através das igrejas cristãs, encontraram espaço político neste governo.
Trabalho integrado contra os direitos das mulheres
A advogada e deputada Chris Tonietto (PSL-RJ) apresentou ao menos nove projetos de lei sobre o tema nos primeiros anos de seu mandato (2019-2020), segundo o monitoramento do Cfemea, além de outras três propostas listadas pelo projeto Elas no Congresso. “É a principal bandeira de atuação parlamentar dela”, diz Masra Abreu. As propostas ainda estão em tramitação na Câmara dos Deputados.
Chirs Tonietto criou e coordena a Frente Parlamentar Mista contra o Aborto e em Defesa da Vida, que foi lançada com a presença da secretária Nacional da Família, Angela Gandra. Ela foi lançada como candidata pelo grupo católico ultraconservador Centro Dom Bosco, do qual é uma das fundadoras.
O Centro Dom Bosco (CDB) é uma das principais instituições católicas ultraconservadoras em atuação no Brasil. A entidade conseguiu censurar um especial de Natal do grupo de comédia Porta dos Fundos, exibido pela Netflix em 2019, onde Jesus era apresentado como homossexual. Dois anos antes, eles processaram Porta dos Fundos por uma paródia sobre o céu. Na época, a deputada Tonietto era advogada do CDB.
A ONG Católicas pelo Direito de Decidir também foi alvo do CDB. No ano passado, por ação do centro, a organização feminista, que defende o direito ao aborto legal, foi impedida de usar o termo “católicas” em seu nome, sob pena de multa diária. O caso está no STF.
A Frente Parlamentar Latino-Americana em Defesa da Vida e da Família é uma das ações de uma agenda internacional antiaborto da qual faz parte o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. A ministra Damares tem participado de encontros com partidos e instituições conservadoras em vários países, como Argentina, Estados Unidos e Hungria. Sob comando de Damares e do ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, o Brasil assinou uma declaração internacional antiaborto. A aliança foi puxada pelo antigo governo norte-americano, junto com países ultraconservadores europeus e árabes. Com a saída dos EUA após a deposição de Trump, o Brasil vem tentando assumir a liderança da aliança ultraconservadora antiaborto no mundo.
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Frente parlamentar antiaborto
A frente parlamentar capitaneada pela deputada Chris Tonietto é composta por nomes antiaborto conhecidos e outros nem tanto. Atualmente são 194 deputados federais signatários – incluindo o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP), e a presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara (CCJ), Bia Kicis.
O bloco reúne ainda outros militantes antiaborto ligados a Bolsonaro e a grupos religiosos, como a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) – autora do PL 232/2021, junto com a deputada federal Major Fabiana (PSL-RJ), que torna obrigatória a apresentação de boletim de ocorrência com exame de corpo de delito que ateste o estupro para a realização do aborto.
A mesma exigência foi feita pela Portaria 2.282, publicada também durante a pandemia, em agosto do ano passado pelo Ministério da Saúde. A portaria ainda inclui a possibilidade de apresentação da ultrassonografia para a gestante como parte do procedimento preparatório para o aborto legal.
Entre os signatários da frente está o deputado federal Capitão Augusto Rosa (PL-SP), ex-PM que apresentou pelo menos quatro PLs para aumentar penas por aborto em 2019 – 1.006, 1.007, 1.008 e 1.009 – todos desfavoráveis aos direitos da mulher, como mostrou o Elas no Congresso. A deputada federal evangélica Flordelis (PSD-RJ), acusada de mandar matar o marido, e o deputado federal e cantor católico Eros Biondini (Pros-MG) também são autores de PLs que defendem o direito à vida desde a concepção e os direitos do nascituro. As propostas foram apensadas ao PL 478/2007, que cria o Estatuto do Nascituro, de autoria de Luiz Bassuma (PV).
A proposta do Estatuto do Nascituro tem sido constantemente ressuscitada por parlamentares conservadores. Inspirou por exemplo o PL 5.435/2021, conhecido como Bolsa Estupro, do senador Eduardo Girão (Podemos-CE), outro signatário da frente antiaborto de Chris Tonietto, ao lado do senador Flávio Bolsonaro (Patriota).
Redução dos direitos das mulheres
O deputado Filipe Barros (PSL-PR), em primeiro mandato, também faz parte do bloco. Ele assina o PL 2.893/2019 junto com Chris Tonietto. O texto sugere a revogação do artigo 128 do Código Penal, que garante direito ao aborto legal em caso de estupro e de risco de vida à mulher. Em um dos trechos, os deputados sugerem que, em caso de gravidez nas trompas – que pode levar à morte da mulher –, os médicos devem esperar a criança morrer naturalmente. “Quando ela [a gestação] evolui para a ruptura tubária, pode-se esperar para intervir imediatamente após a ruptura a fim de estancar a hemorragia.”
Outros blocos parlamentares, lançados com a aprovação de Damares, também se articulam para defender a bandeira antiaborto. O deputado federal Diego Garcia (Podemos-PR) lançou, com a presença de Damares, a Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, que preside atualmente, tendo como uma das principais pautas a criação do Estatuto do Nascituro. Diego é autor do PL 518/2020, que institui o Dia de Homenagem à Vida Humana desde a concepção.
Em 2020, a Frente Mista em Defesa dos Direitos Humanos e pela Justiça Social também passou a articular a pauta do “direito à vida desde a concepção” no Congresso. A ministra Damares prestigiou o lançamento do bloco, junto com o jurista Ives Gandra Martins. Mais 200 parlamentares são signatários do grupo, presidido pelo deputado federal Roberto Lucena (Podemos-SP). Lucena afirmou que a frente tem “a agenda da vida” e que representa “a voz do bebê no ventre materno”.
O senador Eduardo Girão anunciou, nesse mesmo evento, o Projeto de Lei 5.435/20, que ficaria conhecido como “Bolsa Estupro”. Nomeado como Estatuto da Gestante, o PL pretendia criar um incentivo financeiro para que vítimas de estupro não abortassem. Depois de forte reação da opinião pública, a senadora Simone Tebet (MDB-MS), relatora atual da proposta, apresentou um substitutivo que retira esse artigo.
Grupos feministas, entretanto, defendem a anulação do projeto e dizem que o inteiro teor, não apenas um artigo, ameaça os direitos das mulheres. “A criação de um Estatuto do Nascituro é como equiparar o feto a uma criança nascida. Como criar um Estatuto da Criança e do Adolescente para o feto, ou seja, dar poder político ao feto”, considera Masra Abreu, do Cfemea.
Recentemente o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos lançou uma consulta pública para criação do Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização dos Riscos do Aborto, em 8 de outubro. A consulta recebeu 138 contribuições, “a maioria favoráveis”, segundo o ministério. O projeto está sob análise da Casa Civil e da Secretaria de Governo da Presidência da República e, de acordo com a pasta, ainda será apresentado.
Políticas para mulheres têm o menor investimento
Enquanto no Congresso avançam pautas contra os direitos das mulheres, o governo Bolsonaro registrou o menor investimento em programas de políticas para as mulheres desde 2015.
De acordo com estudo do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), divulgado pelo UOL, em 2020 a secretaria teve o maior valor autorizado para ser gasto desde 2017, R$ 124,3 milhões. Entretanto, apenas R$ 36,5 milhões foram utilizados, o nível mais baixo em cinco anos.
O estudo também indica que o ano de 2021 pode alcançar um patamar ainda menor de investimento. Nos primeiros seis meses deste ano, foram gastos R$ 13,9 milhões, 11 pontos percentuais a mais do que no mesmo período do ano passado, mas R$ 1,47 milhão a menos.
A Casa da Mulher Brasileira
A Casa da Mulher Brasileira, que é atualmente apontada como uma das principais políticas na área, recebeu apenas 2,6% da verba autorizada para 2021. Dos R$ 25,5 milhões disponíveis, foram gastos apenas R$ 672 mil.
A pesquisa foi feita a partir de dados disponíveis no portal Siga Brasil, sistema de informações sobre orçamento público federal.
Violência contra as mulheres na pandemia
A responsável pelo levantamento, Carmela Zigoni, afirmou ao UOL durante a pandemia muitas mulheres estão presas em casa com seus agressores e que a verba que foi separada para a defesa dos direitos das mulheres não está chegando aos municípios.
“Os municípios já estão sufocados pelo teto de gastos, pela crise sanitária, qualquer recurso do governo federal faria muita diferença. A autorização para usar esse dinheiro existe, mas a verba não está sendo repassada”, disse.
O Ministério da Mulher contesta os dados apresentados pelo levantamento e afirma que a “execução de 2020 para as políticas públicas voltadas para as mulheres foi a maior dos últimos cinco anos, alcançando 98%”.
Além disso, o ministério também afirma que foi repassado à Casa da Mulher Brasileira de São Paulo o valor de R$ 500 mil no dia 5 de maio e que há previsão de liberação de mais R$ 5 milhões.
Por fim, a pasta informa que sobre as 23 casas que ainda serão entregues, afirma que uma, em Uberaba, ficará pronta em dezembro de 2021; outras 18 serão entregues em 2022 e, as demais, em 2023.
Desserviço da família Bolsonaro e cia
Lídice acredita que apenas uma mudança de cultura será capaz de mudar a realidade do país. Isso não é possível sem o apoio do Estado.
“Por isso, é tão ruim a visão que esse governante genocida (Jair Bolsonaro) do país tem, de estimulo a virilidade tóxica de agressão às mulheres
Lídice da Mata
Com informações da Agência Pública, Agência Patrícia Galvão, Brasil 247, UOL e Revista Fórum