
A pandemia da covid-19 levou a Justiça brasileira para a internet como forma de garantir os atendimentos de forma mais segura. O que permitiu também que as pessoas que moram longe dos tribunais e fóruns recebessem atendimento de forma remota.
Porém, as dificuldades de acesso à internet pela população mais vulnerável mostrou que a desigualdade também está no mundo virtual.
“Essas medidas de inovação que surgem no contexto da pandemia, e que se disseminam em razão das necessidades dela, vieram para ficar”, afirmou à Folha Valter Shuenquener, secretário-geral do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Ele avalia que o Balcão Virtual, ferramenta do Programa Justiça 4.0, “gerou conforto e redução de despesas” para os advogados ao acabar com a necessidade de despachar com os juízes pessoalmente.
O Juízo 100% Digital, que inclui o uso dessa ferramenta, permite a tramitação de processos inteiramente no ambiente digital, desde que haja o consentimento das partes. O que permitiu também a realização de audiências virtuais.
Audiências de custódia também podem ser realizadas por vídeo, de acordo com resolução do CNJ.
Apesar de o preso ter direito de falar com o advogado em particular e de ser acompanhado por seu defensor durante a audiência, ativistas e organizações de defesa dos direitos humanos avaliam que a virtualização prejudica sobremaneira os mais vulneráveis.
Para Antônia Mendes de Araújo, da organização Fórum Justiça Ceará, afirmou à Folha que, apesar do aumento da demanda pelos serviços virtuais, a dificuldade para acessar a internet e para mexer com aplicativos e ações necessárias, como downloads, são um obstáculo a mais para os vulneráveis.
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“Começamos a perceber que as audiências virtuais não estavam acontecendo porque muitas vezes os assistidos não tinham o equipamento, espaço no celular, não sabiam baixar aplicativos. O que a Defensoria fez? Abriu uma sala de atendimento para essas pessoas”, afirma.
A mesma dificuldade se repete Brasil afora.
“O fato de as pessoas terem o smartphone não quer dizer que tenham acesso à internet. Ela tem acesso ao WhatsApp, mas é limitado”, afirma a ouvidora da Defensoria do Acre, Solene Costa ao jornal.
Justiça X crescimento de acesso à internet
Pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI), mostrou que houve crescimento de 9% de pessoas com acesso à internet, em 2020, com relação a 2019. O que significa que 152 milhões de usuários com dez anos de idade ou mais têm acesso.
Porém, 9 em cada 10 usuários das classes D e E, que ganham até quatro salários mínimos, acessam a internet pelo celular.
Em São Paulo, por exemplo, Joana (nome fictício) precisou aderir à virtualização do processo após o filho de 15 anos ter sido atropelado por uma viatura da polícia após ter supostamente participado de um assalto.
Joana, que tem acesso precário à internet, mora muito longe do centro da capital paulista – são 4 horas para ir e o mesmo tempo para voltar do trabalho todos os dias.
“Eles [empregadores] me deram todo o apoio, disseram que eu podia levar o tempo que precisasse se me ligassem”, contou à reportagem.
Lá a internet não falha. Já em sua casa a realidade é bem diferente.
Ela conta que foram três horas por dia em um terreno a céu aberto próxima à sua casa em busca de sinal da operadora, que só pegava no terreno, durante os cinco dias em que filho esteve no hospital e na Fundação Casa aguardando a audiência de custódia.
Apesar das dificuldades, já que ela também teve de ir ao escritório dos advogados para participar da audiência, ela prefere o formato virtual.
“Só de não ter que estar ali, no meio de todo mundo. Você já está passando pelo que está passando, né? Pela internet é bem melhor”, disse.