
A edição desta quinta-feira (16) do jornal francês Le Monde destacou a retomada da rotina e o clima de aparente normalidade no Brasil enquanto a pandemia do coronavírus avança pelo país.
O maior diário da França repercutiu as impressões sobre a retomada do comércio da Taquara, um bairro da região de Jacarepaguá, na Zona Oeste do município do Rio de Janeiro, e nas praias da Barra da Tijuca, depois que as “autoridades do país abriram mão das medidas de contenção, na mais completa anarquia”.
Frisando o nenhum respeito ao distanciamento e o pouco controle sobre a reabertura das atividades, o jornal afirma que o país segue agindo como se a epidemia “que destrói o Brasil” tivesse terminado e “como se na verdade não existisse”.
“Morra quem morrer”
“Sob pressão dos setores econômicos, mas também do presidente Jair Bolsonaro – que testou positivo para o coronavírus em 7 de julho –, os governadores de todos os estados começaram a ordenar o fim das medidas de contenção que haviam sido adotadas localmente (nenhum confinamento foi imposto a nível nacional).
“Uma decisão arriscada, com a covid-19 a varrer o Brasil, com 67 mil vítimas e 1,7 milhão de pacientes infectados. Seja como for: a responsabilidade de se proteger agora é guiada pela boa vontade do cidadão, livre e responsável por suas ações. Um estado de espírito resumido sem filtro em 3 de julho pelo prefeito da cidade de Itabuna, no estado da Bahia: “Morra quem morrer”, destaca.
Leia também: Brasil ultrapassa marcas de 70 mil mortes e 1,8 milhão de casos
“Vírus voltará a crescer” no Brasil
O jornal segue, repercutindo adiante o alerta do especialista em saúde pública da Universidade de São Paulo, Mario Scheffer: “Não há dúvida de que o vírus voltará a crescer”. Enquanto 90% das cidades do país se veem afetadas pela covid-19, “estamos em uma espiral dramática, com uma epidemia que se espalhou por todo o país e sobre a qual provavelmente não conseguiremos recuperar o controle sem vacina”, analisa o pesquisador, que acrescenta, pessimista: “Hoje, no Brasil, é o vírus que comanda.”.
Ainda usando o Rio como exemplo, o diário diz que já em junho, sob pretexto de uma diminuição tímida do número de pacientes hospitalizados, as autoridades decretaram, sem esperar, a reabertura de lojas, shopping centers, igrejas, restaurantes, estádios e parques.
“Na Zona Oeste, no ultraprivilegiado bairro da Barra da Tijuca, ao longo das praias do Atlântico, a atmosfera é festiva e até liberal: as redes de vôlei foram reimplantadas, os quiosques de bebidas estão abertos. E tome cuidado o policial imprudente que tentar fechar um bar lotado. Os vídeos publicados na internet mostram que eles receberam uma série de insultos e ameaças”.
Coronavírus presente
Apesar do clima de normalidade, o Monde afirma que “a epidemia é, no entanto, muito presente”. Como prova: esta enorme tenda branca, montada em um terreno baldio, entre uma rodovia e uma lagoa. O Hospital de Campanha do Riocentro possui 200 leitos, 50 dos quais em terapia intensiva. Triste ironia da história: o local onde muitos morrem hoje muitos cariocas está localizado no coração do “parque dos atletas”, uma área que sediou as celebrações e competições dos Jogos Olímpicos de 2016, cheias de esperança”.
“A poucos quilômetros de distância há também uma das favelas mais famosas do mundo: a Cidade de Deus. Mais uma vez, o relaxamento começou. Nos becos de tijolos e chapas de metal, os habitantes vagam sem medo nem máscara. Desde junho, reinou uma calma incomum e precária: durante a epidemia, as operações policiais pararam e o tráfico de drogas se dá na calma e em plena luz do dia. Andam de bicicleta, sorrindo, adolescentes despreocupados, com caras de anjo, armados com rifles tão altos quanto eles”, narra adiante.
Brasil e o Estado ainda mais distante
“A epidemia já matou dezenas de vidas aqui. ‘Mas as pessoas se acostumaram. Eles até organizam festas e acabam banalizando completamente o vírus, como o resto…”, explica Cristiane, 39 anos, enfermeira e moradora da Cidade de Deus”.
“Aqui como em outros lugares, em um Brasil onde mais de 40 mil pessoas são mortas a tiros a cada ano, o vírus se torna um risco a ser encarado: ‘mais um neste país, infelizmente, acostumado a anormalidades permanentes”, prossegue.
Leia também: Imagem do Brasil derrete no exterior e mostra falência de Bolsonaro, diz estudo
“Como resultado direto da epidemia, ‘o Estado ainda está um pouco mais longe de nós’, afirma Diego de Lima, membro da ONG Noiz, que num prédio crivado de balas, já distribuiu 5 mil máscaras e 20 toneladas de comida na favela. ‘Ninguém vem mais recolher o lixo, ninguém se ocupa das ruas, nem do problema das violências conjugais, que explodiram em todo lugar’.”
‘Liberalidade se sobrepôs ao medo’
O periódico afirma ainda que por todo lado a liberalidade se sobrepôs ao medo. ’Depois de quatro meses, atingimos nossos limites’, constata Raquel Fernandes, enérgica diretora do museu de arte contemporânea Bispo do Rosário, uma das raríssimas instituições culturais da zona Oeste. Para ela e seus 15 empregados nenhum auxílio estatal está previsto, assim como não há data de reinício”.
“Com ou sem abertura a crise, ela pensa, vai de qualquer forma deixar cicatrizes no bairro por muito tempo. ‘Este vírus vai afetar a cultura e com ela tudo o que nós temos de mais precioso: nossa identidade, nossa memória e até nossa própria humanidade.’”, conclui.