
Por Lillian Bento
Se em Dor e Glória (2019) Pedro Almodóvar parecia realizar um filme de despedida com uma espécie de revisão da própria vida e do envelhecimento a partir do personagem de Antonio Banderas, em Madres Paralelas (2022), ele ressurge mais Almodóvar que sempre! Em seu novo longa, o diretor espanhol lança mão do que faz de melhor – o melodrama com personagens femininas – para dar corpo a um verdadeiro manifesto antifascista. O filme, que rendeu a Penélope Cruz a indicação ao Oscar 2022 de Melhor Atriz, chegou a Netflix no último dia 19 e está entre os destaques do serviço de streaming.
A narrativa combina os dramas e conflitos da maternidade solo com o obscuro passado espanhol ao tratar dos “desaparecidos” políticos da Guerra Civil Espanhola (1936 – 1939) e da ditatura de Francisco Franco (1939 – 1975), quando milhares de pessoas foram enterradas em fossas espalhadas por todo o País. Já na primeira sequência, o filme revela sua força melodramática: Janis Martinez (Penélope Cruz) é uma fotógrafa e trabalha em um ensaio com o antropólogo forente Arturo (Israel Elejalde).
Após a sessão de fotos, os dois saem para um café e ela pede ajuda ao cliente para cavar uma fossa localizada em seu “pueblo”, onde seu bisavô e amigos, mortos pelo grupo fascista Falange Espanhola, estão enterrados. Os diálogos, sempre marcantes na obra de Almodóvar, servem nesse primeiro momento para revelar o posicionamento antifascista do diretor frente ao sombrio passado político e a recente ascensão do fascismo na Espanha e no mundo.
O antropólogo explica a Janis que o governo do ex-primeiro-ministro conservador, Mariano Rajoy (PP), acabou com o financiamento para que os mortos políticos fossem retirados dessas fossas. Localizar esses corpos era um compromisso, feito em 2020, do governo de Pedro Sánchez (PSOE), e que foi descontinuado por Rajoy. Logo após deixar claro esse posicionamento, Almodóvar inicia o drama de Janis, fio condutor da narrativa que é centrada na presença materna – uma constante em sua filmografia.
Unidos por interesses políticos, Janis e Arturo iniciam um envolvimento afetivo e ela termina grávida. Casado, ele se nega, em um primeiro momento a vivenciar a paternidade, e Janis segue sozinha com a gravidez. Na maternidade conhece Ana Manso (Milena Smit), uma jovem de 20 anos, que dá à luz a uma menina no mesmo dia em que Janis tem sua filha. O encontro entrelaça a história das duas para sempre.
Ao conhecer a criança, Arturo questiona a paternidade ao comentar a ausência de semelhanças físicas da criança com ele. A dúvida também passa a assombrar Janis, que resolve fazer um teste de maternidade e após o resultado passa a ter que lidar com o luto e uma cadeia de mentiras. No entanto, é a trama de fundo que tempera a narrativa ao tratar do luto interminável das famílias que não conseguiram se despedir dos seus e de uma história fascista que segue a assombrar a Espanha.
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Almodóvar conecta passado e presente ao abrir as fossas e revelar ao espectador que, tanto é possível enterrar o franquismo e o fascismo, como abrir novas covas com o surgimento de grupos fascistas como o Vox, que defende a ditadura franquista e ocupa cadeiras no parlamento espanhol. O presente segue atormentado por esses fantasmas da ditadura.
Juventude e formação política
A relação dos jovens com a história política também está presente na trama, por exemplo, quando Janis, uma mulher de 40 anos, explica para Ana, 20, porque está determinada a abrir a cova onde está seu bisavô. Ela afirma: “Está na hora de você saber em que país mora. Parece que a sua família não te contou a verdade sobre o país. Há mais de 100 mil desaparecidos, enterrados por aí, em valas e perto de cemitérios. Seus netos e bisnetos querem poder desenterrar seus restos mortais para dar a eles um enterro digno, porque prometeram isso às suas mães e avós. E, até fazermos isso, a guerra não terá acabado. Você é nova, mas está na hora de saber onde seus pais e sua família estavam nessa guerra. Vai te fazer bem saber para poder decidir onde quer estar”.
A preocupação de Almodóvar, aos 72 anos, revela uma maturidade política em sua obra e um diretor preocupado com os perigos que a falta de conhecimento histórico representa, uma vez que jovens, sem conhecimento histórico e formação política se tornam alvos fáceis de grupos extremistas. Para fechar esse filme-manifesto, o diretor usa uma citação de Eduardo Galeano, jornalista e militante político que passou a vida a denunciar os horrores das ditaduras na América Latina. “Não existe história muda. Por mais que a queimem, por mais que a quebrem, por mais que mintam, a história humana se recusa a ficar calada”. Parece haver esperança nas cores de Almodóvar.
Mais de Almodóvar na Netflix
Além de Madres Paralelas (2022) é possível fazer uma imersão na obra do diretor espanhol na Netflix; Outros dez títulos da filmografia do espanhol estão disponíveis no streaming, entre eles: Maus Hábitos (1983), O Que Eu Fiz Para Merecer Isto? (1984), A Lei do Desejo (1987), Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos (1988), De Salto Alto (1991), Kika (1993), A Flor do Meu Segredo (1995) e Carne Trêmula (1997), Má Educação (2004) e Volver (2006).
Serviço:
Madres Paralelas
Direção: Pedro Almodóvar
Roteiro Pedro Almodóvar
Elenco: Penélope Cruz, Milena Smit, Israel Elejalde
Onde assistir: Netflix