
Um dia depois de enterrar a filha, que foi morta durante uma operação policial no Complexo do Lins, a administradora de empresas Jacklline Lopes usou as redes sociais na quinta-feira (10) para falar sobre a polêmica ação da grife Farm que disse que doaria a comissão das vendas de Kathlen Romeu para sua família. A tentativa de homenagem foi duramente criticada nas redes sociais e fez a marca voltar atrás e pedir desculpas.
“Querida Farm, não vamos estragar essa relação tão bacana da minha filha com vocês…a família já está cansada demais e ainda tenho que vir aqui defender a memória da Kathlen?! Se querem enaltecer minha filha e deixar viva a memória dela, promovam suas lindas negras, valorizem suas funcionárias, façam uma estampa que tenham algo a ver com a minha filha, façam tributo…mas não promovam campanhas oportunistas usando nome da minha filha. Vocês erraram, erraram feio, mas depois de tudo isso que estou passando, darei a vocês a oportunidade de se retratarem, não somente nas redes sociais. Aguardo retorno!”.
Jacklline Lopes
Kathlen Romeu, de 24 anos, foi baleada na terça-feira (8) com um tiro de fuzil no peito quando visitava a avó no Complexo do Lins.
A Polícia Militar alega que durante uma patrulha foi atacada por traficantes do local, quando começou um tiroteio. Moradores e familiares da vendedora e design de interiores contestam essa versão e dizem que Kathlen foi baleada por policiais.
Um inquérito foi aberto para apurar o caso e cinco dos 12 policiais militares que participaram da ação já foram ouvidos na Delegacia de Homicídios da Capital, onde está sendo feita a investigação.
Repercussão nas redes sociais
O post da empresa gerou uma avalanche de críticas no Twitter e no Instagram. Até as 16h30 de quarta-feira (9), havia mais de 96 mil tuítes sobre a marca, e o tema chegou a ser o mais comentado no Twitter. Para críticos da ação, a Farm passou do limite ao utilizar o nome de uma funcionária assassinada para impulsionar vendas.
A influenciadora Nath Finanças, que produz conteúdos sobre educação financeira, expressou sua indignação sobre o caso. “Ajudar no enterro? Não… Vamos lucrar com a morte alheia”, escreveu.
O fotógrafo Wendy Andrade disse que a empresa estaria “colocando uma funcionária para trabalhar depois de morta”.
“O capitalismo transforma tudo em mercadoria. E sem escrúpulos, já sabíamos. Reduz a matança policial de uma jovem mulher negra a um cupom de descontos. Descreve a obscenidade como ‘solidariedade’”, postou a antropóloga Debora Diniz.
Marca tem histórico de erros
O erro que levou a Farm para os trending topics do Twitter é grave. A marca foi criticada nas redes sociais por utilizar o assassinato de Kathlen Romeu para lucrar mais com a venda de suas peças de luxo.
Mulher negra, de periferia e grávida, Kathlen foi morta durante uma operação policial em Lins de Vasconcelos, na zona norte do Rio de Janeiro. Como a jovem de apenas 24 anos trabalhava em uma loja da Farm, em Ipanema, na zona sul do Rio, a grife achou de “bom tom”, segundo Caroline Sodré, liderança de diversidade da empresa, divulgar o código que a funcionária utilizava para marcar suas vendas para ganhar comissões.
A ideia, diz a Farm, é que o dinheiro das novas compras realizadas com o cupom com o nome de Kathlen, mesmo após sua morte, fosse revertido para sua família. Isso sem contar os detalhes do texto de divulgação da “ação social” da marca, que minimiza o que aconteceu com Kathlen, com palavras que escondem a violência policial, racismo e outras verdades do sistema que tirou a vida dela e a de outros jovens negros todos os dias.
A enxurrada de críticas fez com que a Farm se desculpasse publicamente. A marca emitiu nota garantindo o envio do dinheiro arrecadado para a família de Kathlen Romeu e reconheceu os equívocos da ação.
“A FARM vem a público se desculpar pela ação que envolveu o uso do código de vendedora de Kathlen Romeu nesse momento tão difícil. Entendemos a gravidade do que representou esse ato, por isso, retiramos de uso o código E957. Reverteremos integralmente 100% das vendas geradas através do código no dia de hoje para sua família. E reforçamos que vamos continuar dando todo o apoio necessário de maneira independente, como fizemos desde o primeiro momento em que recebemos a notícia. Olhamos hoje pra FARM com a consciência da nossa função social na redução das desigualdades e seguiremos acelerando todos os nossos programas de inclusão e equidade. Agora o momento é de luto e acolhimento”
Nota oficial da Farm
Racismo
Com esse escândalo mais recente, a discussão sobre outros erros graves da Farm foi reacendida. Tempos atrás, a Farm lançou uma estampa retratando pessoas negras como escravas na Época do Brasil Colônia. Quando a escravidão, infelizmente, era um dos carros-chefes da economia no país.
“Esta é a nossa estampa “Rua do Mar”. Ficamos tristes com a repercussão negativa despertada por ela. Não era esta a nossa intenção. Estamos retirando as peças do nosso site e lojas. Pedimos desculpas a todos pelos sentimentos negativos gerados”, a marca publicou na época, após a repercussão.
Quando a Farm usou uma modelo branca para representar uma figura importante da cultura africana: Iemanjá. Na época, o rapper Emicida foi um dos que se pronunciou. Ele disse que “usar a cultura afro como base de criação de elemento de autenticidade sempre. Empregar modelos negros nunca. Racismo brasileiro onde ninguém é e assim todos são livres para continuar sendo sem culpa. Triste, mas sem novidade”.
O então gerente de marketing da Farm, André Carvalhal, disse na ocasião que a imagem não tinha intuito de representar bandeiras de religião ou raça. “Não era de exaltação de nada, nem ninguém. É uma fantasia. Fantasia não tem raça, pode ser usada por qualquer um. Não representa bandeira alguma da marca seja de sexo, religião ou raça”, afirmou.
Homofobia
O designer Vitor Martins fez um relato de homofobia contra a Farm em 2014. Segundo ele, o caso aconteceu uma loja da Farm no Shopping Higienópolis, onde tentou comprar um casco da marca que até então só vendia peças femininas. Em seu relato no Facebook, Vitor contou que foi tratado com deboche e ironia por uma vendedora, que fez uma cena na loja e chamou atenção de quem estava presente.
“Claro que comprei a blusa. Não ia deixar essa menina decidir o que eu uso. O problema foi a reação dela depois. Se ela falasse no final que foi algo que não percebeu e etc, pronto. Mas a atitude depois que destruiu tudo. Cheguei super de boa, falei: ‘olha, na próxima vez, não faz de novo’, mas ela não estava disposta a me ouvir. Foi bem irônica, dizendo que achou engraçado”, contou.
Com a repercussão do post de Vitor, a Farm respondeu em nota que “este tipo de atitude não faz parte do que a Farm acredita ou celebra, mas infelizmente a marca não tem controle sobre tudo. A Farm, assim que soube do ocorrido, entrou, imediatamente, em contato com o rapaz para se desculpar e também conversou com a vendedora. O episódio serviu como exemplo para todas as lojas da rede, de algo que não deve ser feito”.
Gordofobia
O relato de gordofobia de mãe e filha, a psicanalista Simone Ambrósio, 52, e de Walquíria Poiano, 26. Elas contaram, em 2016, em entrevista ao Universa, do Uol, que visitaram a loja da Farm no Shopping Iguatemi, em São Paulo, mas não foram atendidas, mesmo com o estabelecimento quase vazio. Segundo relatos, as funcionárias, faziam comentários e trocavam risadas ao invés de atendê-las.
A Farm se pronunciou na época, dizendo estar “muito triste” com a situação. “Todos os nossos funcionários sabem que nenhum tipo de preconceito é aceito por nós, não faz parte do que vivemos no dia a dia e nem da nossa cultura. O ocorrido será usado em toda empresa como uma oportunidade de reforçar esses valores. Acreditamos que as redes sociais não sejam o melhor ou único ambiente para que essas questões sejam resolvidas de forma clara e humana com os envolvidos. Por isso, entramos imediatamente em contato com a Simone por telefone para pedir desculpas e dizer que ela é sempre muito bem-vinda em todas as nossas lojas”, disse.
Marca fatura milhões
O Grupo Soma, que surgiu após a fusão das marcas Animale e Farm, em 2010, e recentemente adquiriu a Hering, teve lucro líquido de R$ 14,9 milhões no primeiro trimestre de 2021, revertendo o prejuízo de R$ 4,3 milhões reportado um ano antes, conforme dados divulgados no balanço corporativo da varejista de moda.
O grupo detém ainda outras seis marcas, todas voltadas ao público de maior renda. Seus produtos são comercializados em mais de 221 lojas próprias, distribuídas em 22 Estados brasileiros e dois estados americanos, além de aproximadamente 3 mil revendedores multimarcas.
A empresa apresentou receita líquida de R$ 356,6 milhões no período, crescimento de 20% no intervalo de um ano.
Com informações do G1, Hypeness, Valor Econômico e Money Times