
A escolha da indígena mapuche Elisa Loncón para presidir a comissão que vai redigir a nova constituição do Chile representa é um importante passo no país. Além de substituir a atual Constituição, redigida durante a ditadura de Augusto Pinochet, a eleição de Loncón mostra os avanços do feminismo e da luta dos indígenas no país. Eleita com 96 dos 155 votos, a presidenta do colegiado nasceu em uma comunidade pobre de Araucaína e começou seu discurso em mapudungún, língua da etnia, que é mais numerosa do Chile.
Locón recebeu apoio dos indígenas, dos socialistas e da Frente Ampla de esquerda, a que posteriormente se juntaram no segundo turno os constituintes do Partido Comunista e da Lista Popular, formada por independentes que se dizem contra o sistema capitalista. A Assembleia Constituinte terá exatos 365 para elaborar a nova Carta Magna e foi instalada neste domingo (4).
Avanços democráticos no Chile
Os 155 membros da Assembleia estão divididos em 77 mulheres e 78 homens. O número de gênero praticamente igual se deve ao impulso do movimento feminista no país. E o fato de Elisa Loncón ser a escolhida para presidir é um importante sinal também para os povos indígenas do Chile, que sempre permaneceram à margem das grandes decisões no país e vivem um histórico conflito de terras no sul chileno.
A Assembleia revela ainda outro avanço: as 17 cadeiras reservadas para as 10 nações originárias, o maior número já estabelecido internacionalmente para os povos indígenas em uma assembleia desse tipo. Com a direita encurralada, a centro-esquerda diminuída e a forte irrupção da esquerda independente, os constituintes terão que chegar a um novo texto que permita ao Chile canalizar a crise política, institucional e social que ameaça seu caminho rumo ao desenvolvimento.
A presidência não tem apenas uma importância simbólica, mas também um imenso poder no desenrolar das discussões, apesar de suas atribuições ainda não terem sido regulamentadas. Foi uma eleição totalmente aberta, embora houvesse algum consenso de que o cargo deveria ser preenchido por uma mulher.
Saudação mapuche
“Saudações ao povo chileno, do norte da Patagônia e do mar até a cordilheira”, disse Loncón em seu primeiro discurso, que depois proferiu em espanhol. Prometeu “mudar a história” do país e fez um apelo à unidade.
“Esta força é para todas as pessoas, para todos os setores e regiões, para todas as nações originárias que nos acompanham, para todas as organizações de diversidade sexual. Esta saudação é para as mulheres que caminharam contra qualquer sistema de dominação”.
A dirigente da Constituinte assegurou que o órgão que vai presidir “transformará o Chile em um país multinacional e intercultural” e pediu o cuidado com a “mãe terra e das águas”, algumas das principais demandas buscadas pelos povos indígenas.
“Este sonho é o sonho dos nossos antepassados. É possível, irmãos, irmãs, colegas, refundar o Chile”
Elisa Loncón
Quem é Elisa Loncón
A nova presidente da Convenção Constitucional chilena, a professora universitária de 58 anos, é doutora em linguística e nasceu numa família humilde. Sete irmãos e um pai que nunca teve condições de estudar, ela veio da região conhecida como Araucanía, onde as comunidades mapuches são uma força social de peso.
Permanentes tensões pela propriedade de terras, no passado tirada dos mapuches pelo Estado, causam confrontos, em alguns casos, violentos. Isso explica, entre outras razões, porque nas últimas décadas a direita se impôs na grande maioria das eleições, municipais e presidenciais, na região.
Uma das bandeiras mais defendidas por Loncon é justamente a devolução das terras perdidas na segunda metade do século XIX pelos mapuches. Quando é perguntada pela agressividade de setores indígenas, costuma responder que “a violência do Estado contra os mapuches é maior”. Em recente entrevista ao jornal La Tercera, Loncon afirmou que “é possível dialogar conosco, não tenham medo”.
“Política genocida”
A professora assegura que “o Estado chileno aplicou uma política genocida” contra as comunidades mapuches, e defende “algum tipo de reparação, como o fizeram no Canadá, Austrália e Nova Zelândia”.
Loncón participou intensamente da onda de manifestações sociais que começou em outubro de 2019 e levou o governo do presidente conservador Sebastián Piñera a defender a necessidade de que o Chile tivesse uma nova Constituição — e derrubasse, assim, a herdada da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) — conseguiu o apoio de amplos setores que integram a Constituinte, principalmente da esquerda e congressistas independentes.
Longo processo no Chile
A Constituição que que será elaborada pelo comissão será submetida a um plebiscito no segundo semestre de 2022. Mas, para chegar a este domingo, 4 de julho, foi um longo processo.
A atual Constituição, é de 1980, escrita durante a ditadura de Augusto Pinochet, ainda que o texto tenha também a assinatura do socialista Ricardo Lagos, que em 2005 realizou importantes reformas em alguns dos seus pontos mais autoritários. Desde o final da década de 1980, cinquenta modificações foram aplicadas à Carta atual, tanto no fim da ditadura quanto em sucessivos governos democráticos.
Em outubro de 2019, quando a democracia chilena estava em perigo em um contexto de agitação social, a classe política como um todo deu uma solução institucional para o conflito, oferecendo um processo constituinte. A exceção foi o Partido Comunista, que, no entanto, aderiu ao processo e obteve seis membros na assembleia instalada neste domingo.
América Latina
A eleição de Elisa teve impacto imediato na região. No Peru, a ex-candidata presidencial Verónika Mendoza, aliada do presidente eleito Pedro Castillo, afirmou que “o Chile vive um dia histórico”. O presidente da Bolívia, Luis Arce, parabenizou Loncon em mensagem publicada na rede social Twitter. Em Santiago, o presidente Piñera desejou “sabedoria, prudência e fortaleza” à presidente da Convenção.
Com informações do El País e O Globo