A maior potência econômica do mundo guarda um passado histórico segregacionista e concebedor de idealizações racistas que se espalharam pela América e pelo mundo

A palavra tem origem grega, formada através da união dos termos stereos, que significa sólido, e typos, que significa molde. Antes utilizado no universo da comunicação gráfica, hoje se entende que estereótipo é um conceito, ideia ou modelo de imagem atribuída a alguém, individualmente, ou dentro de uma coletividade.
Perpetuando preconceitos e rótulos, além de estigmatizando grupos sociais, os estereótipos são recorrentes assuntos de debate sobre a sua origem e as “marcas” que deixou na sociedade contemporânea.
Com um passado segregacionista e de sofrimento do povo negro, os Estados Unidos foram a origem de diversas idealizações racistas que se espalharam pela América e pelo mundo. Para compreender as polêmicas internacionais e ter a capacidade de criticar as obras midiáticas “americanizadas” que consumimos no nosso dia-a-dia, compilamos uma série de estereótipos que tiveram o país norte-americano como berço.
Escrito originalmente em 2016 pela jornalista Suzane Jardim e pelo analista de obras de ficção Francisco Izzo, o portal Socialismo Criativo atualizou e aprofundou os conceitos e tópicos apresentados.
Confira a primeira parte da matéria:
O negro trapalhão e malandro
Ainda que apagado da mídia atual, a retratação de negros como pessoas intelectualmente inferiores e atrapalhadas ainda estigmatiza a vida do homem e da mulher preta, seja nas relações de trabalho ou em questionamentos sobre a sua capacidades e habilidades.
A difusão da concepção racista surgiu no coração da terra dos ianques: em Nova Iorque. No século 19, o comediante americano Thomas D. Rice era famoso pela sua apresentações em casas de shows. Os espetáculos consistiam em Rice pintado com cortiça queimada, cantando e dançando músicas e agindo de modo atrapalhado e “malandro”.

Segundo a University of South Florida, o comediante se “inspirou” em afro-americanos escravizados do sul dos Estados Unidos para criar o personagem ‘Jim Crow’, a sua visão discriminatória do homem negro: débil, preguiçoso e trambiqueiro.
A performance de Rice era tão popular entre os brancos estadunidenses que o conjunto de leis que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos ficaram conhecidas, popularmente, como ‘Leis de Jim Crow”. Além disso, o show iniciou uma onda de apresentações de pessoas brancas fazendo blackface e imitando negros em situações cômicas e estereotipadas pelo país, chamadas de minstrel shows.
Tais representações sobreviveram por tempos, ganhando reformulações para o teatro e televisão e perpetuando uma imagem caricata e risível do negro. Além disso, o termo ‘Jim Crow’ se tornou um sinônimo para pessoas de pele escura nos Estados Unidos.

Naquele período de segregação, uma empresa reconhecida mundialmente pelo entretenimento lançou um filme que carregavam o estereótipo racista: a Disney. Em 1941, a companhia lançou o filme ‘Dumbo’. No longa-metragem, há a presença de personagens que agem com uma “malandragem exagerada” e o típico sotaque sulista. Quais eram os personagens? corvos, ou crows em inglês. Lembrou do Jim Crow?
O negro libertino
Em 1898 – a escravidão nos EUA já havia sido abolida e as leis de segregação vigoravam no país – foi lançado um livro infantil chamado The History of Little Black Sambo (A História do Pequeno Negro Sambo, em tradução livre).
A história era sobre um garoto de pele escura que tapeou um grupo de tigres famintos graças ao seu modo de ser: feliz, sem preocupações, irresponsável e malandrão.
Tais características eram típicas do negro chamado de ‘Coon’ – contração da palavra racoon, guaxinim em português -, termo pejorativo que associava afro-americanos ao animal pequeno e sorrateiro, que chafurda latas de lixo e “furta” alimentos que encontra.
Ao mesmo tempo, um novo personagem ganhava fama nos minstrels shows pelo país: o Zip Coon. Enquanto Jim Crow era um pastiche de um escravo negro sulista, o Zip Coon, interpretado pela primeira vez por George Dixon em 1834, era o que consideravam um “típico negro liberto do norte”: um negro malandro que quer ostentar sua situação de liberto andando bem vestido, cheio de arrogância por não “se colocar no seu lugar”, usando gírias exageradas e andando pelas cidades aplicando golpes.

Coon (ou preto Sambo), acabaram se tornando uma ofensa racial usada para associar negros à malandragem, preguiça, gente que foge das obrigações, que conta piadas o tempo todo, vive cantando e só quer ficar “de boa” comendo melancia.
A mãe negra servil

Em inglês, ‘mommy’ é o modo carinhoso se de chamar uma mãe. No século 19, com o sotaque típico do sul do país, os escravos negros pronunciavam ‘mammy’. Não poderia ser previsto que uma variação de linguajar seria um termo que conceituaria a presença e atuação da mulher negra diante de uma sociedade racista.
Segundo o jornal acadêmico The Conversation US, o termo vem das memórias e diários escritos por brancos no pós-guerra civil, onde contavam como foram felizes ao lado da escrava de casa que era “quase da família”, aquela que os amamentou, que deixava os próprios filhos de lado pra cuidar deles, que não tinha vaidade, nem vontades . Segundo os escritos, a mulher preta dedicava a vida inteira a todas essas crianças brancas maravilhosas que ela amava como se fossem os próprios filhos.
A imagem criada das ‘mammies’ era uma pequena e distorcida verdade cercada por uma mentira enorme. A caricatura retratava uma figura obesa, grosseira e materna. Ela tinha um grande amor por sua “família” branca, mas muitas vezes tratava sua própria família com desdém. Embora tivesse filhos, às vezes muitos, ela era completamente desexualizada. Ela “pertencia” à família branca, embora isso raramente fosse afirmado.
Ao contrário de ‘Coon’, ela era uma trabalhadora fiel. Ela não tinha amigos negros; a família branca era seu mundo. A caricatura da preta era mais um mito do que um retrato preciso.
A fixação da imagem da mulher negra como mammy foi também usada no discurso ideológico que manteve as mulheres negras presas ao trabalho doméstico. Eram mulheres com vocação para servir e não para alcançar melhores postos e pretensões nos mercados de trabalho. Além disso, por anos definiu o lugar da mulher negra na mídia: só aparecia na função de doméstica e conselheira da patroa, não sendo representada como nada além de uma eterna servente.

Hattie McDaniel, a primeira mulher negra a ganhar um Oscar por seu papel no filme ‘Gone With the Wind’ (…E o Vento Levou, no Brasil), fez a maior parte da sua carreira interpretando Mammies no cinema — só na década de 30, McDaniel interpretou pelo menos 40 empregadas domésticas. Vale lembrar que, o ano em que Hattie McDaniel levou o Oscar de Melhor Atriz (1940), foi também o ano em que uma pessoa negra esteve pela primeira vez em um cerimônia do Oscar sem ser para fazer faxina ou servir alimentos.