
Arte: Canva
Por Domingos Leonelli*
Thiago de Jesus Dias morreu de várias causas numa noite fria da cidade de São Paulo do dia 7 de julho deste ano de 2019.
Ao 33 anos, o entregador da Rappi, aplicativo de compra de produtos, teve um AVC como eu e milhares de brasileiros que sofreram este tipo de acidente. Se socorrido a tempo Thiago provavelmente estaria vivo e recuperado. Mas Thiago não tinha plano de saúde e trabalhava para um aplicativo ao qual ele se dirigiu e que foi o primeiro a não socorrê-lo ou assumir qualquer responsabilidade. Ajudado por moradores do bairro de Perdizes, onde foi fazer a entrega encomendada pelo aplicativo, Thiago foi empurrado de uma patrulha da PM para o Corpo de Bombeiros e deste para o Samu, que não enviou a ambulância. Um motorista de Uber chamado por um morador recusou-se a leva-lo para o hospital alegando que iria sujar o seu carro, já que Thiago havia urinado nas calças. Quando, finalmente, conseguiram que ele chegasse ao Hospital das Clínicas, veio a falecer.
A OAB de São Paulo, por meio de sua Comissão de Direitos Humanos, alerta sobre “as graves consequências para o direito à vida causadas por uma conjuntura sociopolítica marcada pelo acelerado desmonte de políticas públicas somada, concomitantemente, à ampla fragilização das relações de trabalho“.
Parece evidente que dentre as causas da morte de Thiago de Jesus Dias está a desídia dos órgão públicos (PM, Bombeiros, Samu). Esta também a causa apontada pela OAB, a dita “fragilização das relações de trabalho”.
Mas será mesmo uma simples fragilização? Talvez fosse, se houvesse um contrato de trabalho que não oferecesse as mínimas garantias, ou que fosse eventualmente esvaziado por uma outra lei, ou medida administrativa.
Ora, a Rappi, quando tomou conhecimento da ocorrência, simplesmente ignorou o fato e se desvencilhou do problema. O mesmo que fez a Uber, meses atrás, com um dos seus motoristas assaltado em Brasília, que por coincidência também se chamava Thiago.
A verdade é que milhões de pessoas no mundo estão trabalhando como entregadores, motoristas, prestadores de serviço, para “nuvens” que não possuem o mínimo de estrutura administrativa ou de pessoal, nas cidades onde operam.
Esses trabalhadores chamados de “colaboradores, parceiros ou empreendedores”, são mesmo trabalhadores? Sem salário, sem contrato, sem seguridade social, operando com seus próprios equipamentos (carros, motos, máquinas) e destinando altos percentuais do que é cobrado para os seus “senhores” virtuais. São servos ou escravos oriundos da revolução tecnológica?
São trabalhadores de um sistema extremamente precarizado de uma ponta (pré) ou de outra (pós) dos modernos processos produtivos tecnológicos, tanto nas indústrias como nos serviços. No trabalho-pré ou no trabalho-pós. Por exemplo, para se chegar a um smartphone é preciso extrair minérios que por menos que sejam representativos no valor do aparelho, são indispensáveis à sua fabricação. E no trabalho pós. Os que finalizam as operações dos criativos aplicativos de serviço e comércio, os entregadores de pizzas, os eletricistas, os motoristas de Uber.
Segundo Ricardo Antunes, no seu excelente livro “O Privilégio da Servidão” a respeito do novo proletariado na era digital, “expande-se a uberização, amplia-se a pejotização, florescendo uma nova modalidade de trabalho: o escravo digital “. Na prática, essas “nuvens” patronais cibernéticas, tipo Uber ou Rappi, concretizam o famoso “zero hour contract”, modalidade em que os “trabalhadores ficam à disposição esperando uma chamada. Quando a recebem, ganham, estritamente pelo que fizeram, nada recebendo pelo tempo que ficaram à disposição da nova “dádiva”, ainda segundo Antunes, caracterizando o “privilégio da servidão”.
Assim, embora a Declaração dos Direitos Humanos da ONU determine no seu artigo 4 que “ninguém será mantido em escravidão ou servidão”, calcula-se que, em pleno século 21, na era da economia do conhecimento, existam mais trabalhadores escravizados que nos séculos 17, 18 e 19. Grande parte deles como resultado, exatamente, da revolução tecnológica.
Já se esboça uma reação a este fenômeno: a justiça da Inglaterra obriga as empresas de aplicativos a estenderem aos trabalhadores e trabalhadoras os direitos trabalhistas e, na Alemanha, novas leis trabalhistas estão tratando do assunto.
No Brasil, o Partido Socialista do Brasil (PSB) incorporou a seu programa a Economia Criativa com um eixo estratégico de desenvolvimento, mas diz que é preciso submeter essa economia a uma visão crítica do socialismo democrático. E, em primeiro lugar, defender os valores do trabalho e dos trabalhadores nas novas tecnologias.
Presidente do Instituto Pensar e Coordenador do site www.socialismocriativo.com.br