O caminho da regulação da internet é inevitável. É o que afirma o pós-doutor e especialista em mídias digitais Fábio Malini. Ele defende que os conteúdos publicados nas plataformas das redes sociais fazem parte da memória coletiva. Por isso, devem ser transformados em acervo público para que possam ser auditadas.
Fábio Malini foi o convidado da 21ª live da Revolução Brasileira no Século 21, que nesta quinta-feira (7), debateu as ‘redes digitais’. Malini é ensaísta, professor e pesquisador sobre ciências de dados, redes sociais e comunicação política.
“O direito à memória coletiva é mitigante da desinformação. Se, de alguma forma, você audita esse acervo, desestrutura esse grande negócio que é produzir ódio”, defende Malini.
Também participaram do debate o coordenador do site Socialismo Criativo e membro do Diretório Nacional do PSB, Domingos Leonelli; e a integrante da Direção da Juventude Socialista Brasileira (JSB), Juliene Silva. A mediação foi feita por James Lewis.
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A Revolução Brasileira por Caio Prado Junior
“Adotamos o principio básico de Caio Prado Junior de que a revolução é um processo que não se refere exatamente à tomada de poder, que é apenas um momento. As grandes revoluções mundiais foram marcadas pelo surgimento de novas tecnologias. A Revolução Francesa pelo surgimento das primeiras indústrias com as máquinas a vapor, a Revolução Russa foi marcada pela energia elétrica e a Revolução Chinesa está se refazendo com os princípios das novas tecnologias da revolução 4.0 nas indústrias.”
Domingos Leonelli
Cooperação x controle
Fábio Malini conta que, desde o surgimento da internet, em 1969, como projeto militar estadunidense, há uma tensão no seu desenvolvimento que se dá no conflito entre cooperação e controle.
“O projeto da internet sempre foi de resistência. A lógica militar americana foi pensada no contexto da Guerra Fria. A rede é uma arquitetura de resistência tecnológica e politicamente pensada. Quando ganha popularidade é que o negócio começa a mudar um pouco de figura. A partir da década 1990, a gente vê uma série de ações de tentativa de controle.”
Fábio Malini
No início, explica o professor, o intuito é compartilhar informações estratégicas por um meio que, caso invadido, não daria acesso à informação, já que a rede apenas a circulava entre os primeiros pontos conectados.
Com o passar dos anos, seu uso passou a ter uma lógica de compartilhamento de informações, especialmente, entre universidades. O que conferiu o caráter colaborativo e, muitas vezes, fora da lógica do capitalismo à rede. Porém, com o aumento da popularidade, também vieram as tentativas de controle.
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“Em vários momentos da história, desemboca entre cooperação e controle. A internet foi desenvolvida basicamente em quatro pontos – leste, oeste, norte e sul – em universidades [dos EUA]. O pensamento era trafegar informações, mas caso algum ponto da rede fosse capturada, não conseguiria a informação porque ela não estaria armazenada em lugar nenhum”, detalha.
Para ele, a “relação com a cultura universitária” que a internet tem desde o seu início é justamente a lógica de cooperação fora do capitalismo.
Materialização dos movimentos digitais
Fábio Malini volta a 2011, ano em que o ditador egípcio Hosni Mubarak foi derrubado.
“Aquele movimento desencadeou uma eclosão em diferentes partes do mundo de ondas de reivindicação e indignação. Essa onda chegou ao Brasil em 2013 e essa conexão entre a indignação e a internet se materializou”, afirma.
No Brasil, avalia, o movimento é rodeado de controvérsias. Isso porque logo após as manifestações daquele ano, os movimentos ligados à extrema direita passam a se articular.
“E a usar melhor essas tecnologias para capitanear aquela pessoa comum, frustrada depois de 30 anos de períodos neoliberais extremamente excludentes que produziram massas de trabalhadores precarizados que se vê diante desse sistema político diante de uma recusa muito grande. O papel da extrema direita foi fundamental em termos de interpretar melhor a frustração dessas pessoas que, mesmo precarizadas, passaram por uma mudança tecnológica.”
Fábio Malini
Massificação tecnológica
Fábio Malini lembra que o processo de massificação tecnológica no Brasil foi iniciado no governo do ex-presidente Lula, em 2007.
“Até 2011, ainda é restrita às classes média e alta, que pensavam a internet como um modelo de democracia, uma ágora digital. Quando a gente chega em 2020, a realidade é completamente diferente. As redes sociais são pensadas num universo racista de contrarrevolução que começa a acontecer e vai dar em ódio, haters, desinformação, etc. Mas ao mesmo tempo, essa interpretação pode ser extremamente elitista ao dizer que, a partir do momento em que o pobre passou a ter o seu WhatsApp ‘olha no que o mundo se transformou’”, analisa.
Para não cair nesse abismo simplista e preconceituoso, é preciso lembrar que a internet também reflete a mudança no mundo do trabalho, que não se faz mais apenas com as mãos. É preciso manipular a informação, lembra Malini.
“Atualmente, 60% da classe C tem acesso à internet. Então, se tornou o principal meio de cultura, entretenimento e informação dessas pessoas. E o grande elemento revolucionário, além de incluir a produção cognitiva desse sujeito, é construír esses espaços para serem ouvidos. Assim como a imprensa revolucionou o século 16, a internet e seus dispositivos exige muito de uma alfabetização. É muito difícil acessar a internet e gozar de tudo o que oferece se não for alfabetizado porque é um meio extremamente do texto e da leitura. As interfaces de todas as plataformas são muito textual”, ressalta.
Por isso, ele avalia que se trata também de uma “revolução cognitiva”.
Malini cita Marshall McLuhan, que afirmou que o eletrônico é baseado em circuito. Ou seja, requer a participação de quem o utiliza. Exemplificado por com a programação de uma smart TV, que precisa ser programada ou a interação que o celular exige para se ter acesso ao que é oferecido pelo aparelho e seus aplicativos.
“Agora, você tem uma capacidade muito maior de participar, com seu jeito, linguajar, sotaque, repertório, e criar seus públicos e audiência. O que cria uma dimensão político cultural completamente distinto do que foi o final do século 20”, disse.
Juliene Silva destacou que há muito o que ser feito para garantir o acesso à rede, especialmente, aos mais vulneráveis. O que foi ainda mais evidenciado durante a pandemia.
“O processo político também tem se desenvolvido pelo virtual – da escolha do candidato a forma como vai se exercer a cidadania. Mas há ainda uma exclusão muito grande. No início da pandemia, dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostraram que 4 milhões de estudantes da rede pública não tinham acesso à internet. Esses alunos ficaram desconectados do processo educacional, mas também da cidadania. Essa conexão de rede cria um processo de aproximação e estrutural social, mas quem não está dentro sofre um processo de exclusão.”
Juliene Silva
Efeito TikTok
Um dos efeitos que as redes sociais têm causado na política é o fortalecimento dos políticos muito além dos partidos. O que Malini cita como ‘efeito TikTok’ e exemplifica com movimentos como Brexit e o trumpismo.
“Isso se dá porque os políticos como influenciadores são capazes de criar a sua própria audiência. É o impacto dos partidos digitais na democracia. Uma das grandes contradições é que os políticos estão ficando maiores que os partidos”, analisa.
Por outro lado, o professor indica uma forte emergência da figura partidária se construindo como plataforma idêntica aos modelos das big tecs.
“É bem interessante porque é contraintuitivo. A gente não imaginava que os partidos novos ganhariam tanto fôlego”, observa.
Produção de minorias
Na arena pública que é a internet tem muito hater, mas também muitas outras perspectivas em debate. O que faz com que o direito ao compartilhamento precise ser garantido.
“Para que a gente tenha uma sociedade em que o compartilhamento não seja apenas das estruturas capitalísticas. O compartilhamento acelera a socialização. A garantia disso faz a gente ter um regime de plataformas que trate de maneira mais igualitária os conteúdos que circulam ali”, defende.
O que inclui regulamentação que garanta a transparência, por exemplo, do que os algoritmos nos sugerem.
“A internet, diferente dos grandes meios de comunicação, é uma produção de minorias. Quanto mais populações acessarem, diferentes segmentos vão surgir, o que faz com que seja interessante e tenha esse espírito democrático, apesar das forças de controle”, afirma.