Em recente visita ao Brasil, o coordenador da Aliança Progressista nas Américas, o argentino Esteban Paulón, afirma que a organização acompanha com preocupação o processo pré-eleitoral brasileiro diante dos ataques e ameaças do ‘bolsonarismo’ à democracia.
Na entrevista concedida ao portal do PSB, Esteban defende que as eleições de outubro no Brasil tenham uma visibilidade global, como forma de garantir transparência e lisura.
Também sustenta a ideia de criação da união dos países sul-americanos e analisa o avanço da extrema-direita na América Latina.
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O coordenador da AP ressalta a importância dos partidos políticos para as lutas sociais: “A única organização que tem uma visão integral da sociedade e de seus problemas é o partido político”.
Para ele, a receita para o progressismo retomar sua força é “voltar a representar um projeto de futuro”, centrado no combate às desigualdades. Já que para Esteban, “o pior que pode nos acontecer, como seres humanos, é perder a ideia do coletivo”.
Confira abaixo a entrevista completa:
1) Como o senhor pensa que a Aliança Progressista pode auxiliar nas eleições do Brasil, onde se prevê ameaças a normalidade do processo democrático, uso de fake news, por exemplo, para enfraquecer o debate público?
A primeira coisa que devemos saber é que a Aliança Progressista é uma plataforma democrática, então um dos nossos valores é defender a democracia.
É importante dar visibilidade global ao que está acontecendo no Brasil, como foi o processo eleitoral na Nicarágua e na Costa Rica. Este encontro em Brasília, durante o Congresso do PSB, é uma primeira ação que permitirá que daqui até outubro possamos debater, dar visibilidade e mobilizar a comunidade política para a defesa da democracia no Brasil.
Hoje, há uma ideia de que um país como o Brasil, que é muito importante na região e contribui para a estabilidade política na América Latina, foi vítima de um golpe militar. Então não podemos descartar nada, temos que prevenir qualquer movimento e colocar num cenário o que está acontecendo aqui, como caminha o processo democrático e eleitoral, e acompanhar as denúncias.
Costumo dizer que o Brasil vai às eleições de outubro com a chapa presidencial “100% Aliança Progressista”, porque os dois partidos que são membros no Brasil compõem essa chapa. Não falo só da parte da América, mas também de partidos da Europa e Europa do Norte, hoje os partidos que são membros da Aliança Progressista têm uma aliança institucional.
Reitero que nosso principal compromisso é o fortalecimento da democracia, então vamos acompanhar e dar tribuna a situações que podem ocorrer, não só relativas a fake news, mas também a ameaças. Temos a obrigação de acompanhar os partidos membros no processo eleitoral no Brasil.
A comunidade internacional é bem consciente de quem é Jair Bolsonaro, mas também é bem consciente que o Brasil determina a estabilidade na região.
Nós temos hoje no Chile um governo novo (de esquerda) que está sendo muito atacado e desestabilizado, que perdeu a popularidade muito rápido graças a fake news e por distintas atitudes da direita. Temos na ainda na Argentina uma situação de instabilidade política, e acho que a comunidade internacional também toma nota disso como fator importante no contexto regional.
Nossas organizações, mas também a sociedade civil organizada, deve acompanhar a campanha eleitoral e zelar para que seja transparente.
Porque esperamos que no início do ano haja um governo que faça com que o Brasil volte a ser significativo no que diz respeito às nações internacionais, aos direitos humanos, ao meio ambiente e à garantia da democracia e das liberdades.
2) Como coordenador da Aliança Progressista, o que o senhor pensa da proposta de se criar, a exemplo da União Europeia, a União dos países sul-americanos?
A Aliança Progressista é uma plataforma global, mas nossa visão é regional. Nosso foco é América Latina, nosso foco é integração regional, primeiro nosso entorno, que é a América do Sul, mas também pensamos na América Central e do Norte.
Mas para pensar em uma real integração temos que aprender as boas lições, as boas práticas do que funcionou e tomar notas do que não funcionou.
Temos que avançar sem medo e sem prejuízo à institucionalidade, primeiro a política. Não podemos pensar que a integração vai começar com a economia, esta responde a interesses que não são direcionados à política, é uma espécie de lei da selva, que é o que se passa agora no Mercosul. Os países tentam negociar com Ásia, Europa, ou com Estados Unidos em benefício próprio e não pensam numa lógica regional.
Primeiro a política, já que a parte econômica não foi completamente exitosa, há países da União Europeia que não usam o Euro, então há diferenças, mas o primeiro passo é entender o que queremos fazer com a América.
3) O avanço da extrema direita é evidente em vários países. Como o senhor pensa que os progressistas devem reagir a isso, em especial na América Latina? Podemos citar o exemplo do Chile com o novo governo e suas dificuldades, como podemos reagir a isso e nos posicionar diante desse quadro?
Temos que ser criativos, inovadores e valentes, porque acho que o campo progressista, não só partidos políticos, mas também movimentos sociais, estão tentando se defender de um discurso que está ganhando e penetrando na sociedade.
A esquerda está perdendo a capacidade de propor um projeto de futuro, um projeto de progresso. Em um mundo que está em crise, com uma guerra, saindo da pandemia. Nós seguimos pensando com a cabeça dos séculos XIX e XX.
Qual é o nosso sujeito social como progressistas? É o trabalhador industrial do ABC Paulista? É o trabalhador que vai trabalhar por 40 anos na mesma fábrica e seu filho também, ou isso mudou? O trabalho e o trabalhador seguem sendo nosso principal foco, afinal é o que ordenou o sistema capitalista, mas o que passa com tudo mais?
Como funciona a extrema direita? A América Latina é a região mais desigual do mundo, ainda mais que África ou Ásia, que têm mais pobreza, mas aqui é mais desigual. O que faz a extrema-direita na Europa e na América Latina sobre as desigualdades existentes? Essas desigualdades são frutos dos privilégios de determinadas pessoas, então temos que identifica-las, elaborar propostas de mudanças e atuar.
Um estudo recente na Argentina mostrou que a maioria do eleitorado de Javier Milei, um líder da extrema-direita, é formada por homens, jovens, heterossexuais e brancos. Gente que sente que seus direitos estão ameaçados pelos “privilégios” de outros.
Supondo que um homem, torturado na ditadura, é reparado pelo Estado, como esperamos que repare, mas para esses segmentos conservadores ele adquiriu um “privilégio”. Há na Argentina a cota para pessoas trans e travestis trabalharem no Estado, isso é privilégio? Matrimônio homossexual é privilégio? Não, eles podem casar como qualquer outro. Mas para esse grupo de extrema-direita, o que era “deles”, parece não ser mais.
A melhor receita para o progressismo é voltar a representar um projeto de futuro, voltar a explicar por que existem as desigualdades e como vamos voltar a trabalhar para mudar. Eu posso dizer que há pobreza na França, posso trabalhar para combater a pobreza com o discurso de Marine Le Pen, ou ouvir Emmanuel Macron, que não fala com o povo.
Aqui na América Latina acontece o mesmo, quem vota em Bolsonaro no Brasil? Provavelmente muitas pessoas que votaram no PT, que votaram em Lula, pessoas pobres. Um voto mais de classe média, instruído, diz “não, em Bolsonaro não posso votar. É um irresponsável, destruiu o meio ambiente”, por exemplo.
Temos que construir um cenário que volte a propor um projeto de futuro, que defina para quem nós estamos falando, quem é o nosso sujeito social. Não é mais o sujeito social do marxismo, um operário da sociedade industrial, é preciso olhar o que se passa na prestação de serviços como Uber, Rappi, temos que estudar isso e dar respostas concretas ou pegarão o caminho da extrema-direita, o caminho mais curto.
Um cidadão pobre analisa que uma minoria, que está na política e no Estado, lida com seu dinheiro. Ele pensa que o problema é o Estado, muitos impostos, muitas taxas.
Se não houvesse tanto imposto, ele poderia pagar uma escola para o filho, poderia pagar por atendimento de saúde privada. Isso é mentira. Mas a pessoa que não tem dinheiro no fim do mês pensa, “já vi como o outro governa, então vou tentar com o próximo”.
Acho que a plataforma da Aliança Progressista pode ser uma boa oportunidade de começar a construir esse projeto de mudança, que tem que ser americano, tem que ser nosso.
Não pode ser importado. É muito importante o que pensam nos grandes centros acadêmicos do mundo, mas o que se passa aqui, o que produzem nossos pesquisadores, o que nós vivemos é fundamental ter como referência. Temos que pensar com a nossa própria cabeça.
Nos anos de 1990 triunfou a lógica neoliberal, do individualismo radical. Uma parte da nossa sociedade aceitou essa teoria, com o fim das ideologias, com a terceira via de Tony Blair.
Uma parte dos latino-americanos aceitou que o capitalismo é um sistema econômico e que o socialismo seria capaz de “humanizar” os efeitos do capitalismo. Então vemos a extrema-direita se perguntando por que temos que aceitar esse sistema vigente?
Eles passaram a criticar o stablishment e nós a sermos associados ao status quo, por defendermos a democracia que vinha sendo construída. Por isso temos que voltar a nos conectar com nossa história e construirmos uma proposta de futuro.
Antes de Alberto Fernández assumir a presidência, nosso partido vinha trabalhando com muitos setores que estão com ele, então no primeiro momento tivemos uma visão esperançosa e positiva. Estava com pessoas relevantes do país que já tinham trabalhado com o Partido Socialista. Então tínhamos uma expectativa positiva.
Aos poucos, fomos mudando essa impressão, pois dentro da coalizão era muito forte a presença do kirchnerismo, e isso compromete o funcionamento do governo. A crise interna foi se ampliando até chegar a uma situação de paralisação.
O governo está em uma paralisação permanente, não encontra um rumo a um ano das eleições, então é muito difícil que ele possa construir um projeto nesse tempo. Temos 50%, 60% de inflação por ano e 40% de pobreza na Argentina neste momento.
A economia está crescendo, mas não há distribuição porque as políticas estatais, sobretudo por causa da inflação, não têm o resultado esperado. Há um mal-estar social muito grande. Nas eleições parlamentares do ano passado o governo perdeu, voltou a ganhar o partido que gerou a crise, durante o governo do Macri – então as pessoas voltam a visualizar que a opção de direita poderia solucionar os problemas.
Hoje esse mal-estar gera um crescimento da extrema-direita, dos liberais que nas pesquisas eleitorais já têm quase 20% dos votos em pouco tempo. É um crescimento rápido. O discurso deles propõe fechamento de universidades públicas, de escolas públicas, o fim da saúde pública.
Porque, no discurso deles, o poder aquisitivo da sociedade vai permitir que o cidadão eleja a escola que quer, o hospital que quer, sem o Estado.
Há uma crise de governabilidade muito grande, muita irresponsabilidade, a sociedade está muito dividida.
A oposição votou em favor do acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), mas também há setores da oposição com uma proposta política de centro, como o Partido Radical e alguns setores moderados. Não é claro como o sistema político vai chegar as eleições do ano que vem.
Nessa situação, o Partido Socialista, em nossa última reunião nacional, decidiu elaborar uma base de quatro ou cinco pontos de diálogo transversal com setores da “Frente de Todos” e setores do “Juntos por El Cambio”, que têm vocação democrática, por que achamos que o cenário político do ano que vem será diferente do atual.
Há setores do atual governo que são muito importantes com os quais temos afinidade, assim como há setores da atual oposição também. Em alguns Estados participamos do governo, então temos que falar com todos.
O pior remédio para a crise que estamos vivendo é a saída pela extrema-direta, então temos que fazer com que a saída seja sobretudo democrática.
5) Como o senhor encara a presença econômica da China na América Latina?
Não sou especialista em economia, mas essa presença existe. Entendo que em um momento de crise global, de guerras, de alimentos e energia, a nossa região tem um potencial de produção em todos esses campos, então torna-se uma região de interesse para todas as potências, como Estados Unidos, que têm abandonado o resto da América e a China também.
Temos na Argentina a principal reserva de gás, que já está produzindo e ano que vem vamos poder exportar. Temos a produção alimentícia, no triângulo Chile, Bolívia e Argentina, também temos o lítio, a energia do futuro para os carros elétricos e celulares.
Temos o ferro no Brasil e também o alimento. A cidade em que vivo, Rosário, uma cidade portuária, exporta alimento para 300 milhões de pessoas por ano, enquanto a Argentina tem 45 milhões de habitantes.
O Paraguai também cresceu muito recentemente na produção de soja e azeite. Com isso, há um interesse geopolítico na região e a China tende a aumentar sua presença pelo fator econômico, não tanto em questões culturais.
Com a guerra na Ucrânia, a China foi golpeada porque a previsão de crescimento para a economia baixou muito, falta energia e falta alimento. Assim, a América do Sul pode se beneficiar.
6) Como conciliar o trabalho da Aliança Progressista com o trabalho da Coordenação Socialista Latino-americana?
Temos dois ou três iniciativas na região com o mesmo objetivo e as pessoas que compõem são quase as mesmas. Compartilhamos grupos jovens também, temos que trabalhar em conjunto porque o tempo, a energia, as necessidades e a inteligência não são infinitas.
Temos que aprender a usá-las. Outra coisa que temos que aprender dos setores de direita é que eles sempre tiveram clara coordenação, formação e preparação. Se você escuta Milei, Bolsonaro ou Santiago Abascal, percebe que eles dizem o mesmo. E não dizem o mesmo por que se veem pelo Youtube e se copiam, eles dizem o mesmo por que são formados na mesma escola.
O progressismo teve em algum momento uma visão de formação de líderes. Hoje, isso não existe, na dimensão que precisamos, então temos que recriar no campo progressista essa capacidade para construir coletivamente, capacitar jovens que vão tomar em suas mãos o destino dos partidos e das organizações populares. Temos que nos preparar, não podemos improvisar, temos que estudar, organizar, ter formação de base.
Por que eles fazem isso, eles têm a escola continental, academias. Essa é uma grande possibilidade que tem a Aliança Progressista. Acho que hoje é útil ao campo progressista usar tempo e dinheiro para produzir um relato comum, preparar e capacitar novas lideranças para a região.
A Aliança Progressista é uma plataforma bem aberta, que é muito útil para isso. Há, por exemplo, no partido sueco um projeto com essas características de formação, para jovens e mulheres. Temos que ver como a coordenação socialista trabalha em sintonia com isso. Temos que compartilhar o que produzimos, em todos os eixos.
Se diz muito hoje que a política é formada por causas. Sempre digo que temos três ou quatro movimentos internacionalistas: LGBTQIA+, ambiental, feminista e do trabalho.
Assim como eu sou parte de uma causa, o movimento LGBTQIA+, posso apoiar o movimento das mulheres e o ambientalista também. A única organização que tem uma visão integral da sociedade e de seus problemas é o partido político.
É necessário pensar em conciliar os interesses coletivos. A política das causas é muito importante e eu a defendo por que faço parte, mas ela não pode substituir a política dos partidos e os movimentos que propõem novos modelos de sociedade. O pior que pode nos acontecer, como seres humanos, é perdermos a ideia do coletivo.
*Com informações da Assessoria de Comunicação do PSB Nacional