Com a alta da inflação no Brasil do presidente Jair Bolsonaro (PL), a população brasileira tem se alimentado cada vez menos e pior. A novidade agora é que o consumidor das classes mais baixas elevou as compras de produtos com baixa taxa de nutrientes como biscoitos, salgadinhos e refrigerantes. É o que mostra uma pesquisa da empresa de inteligência de mercado Horus.
O produto que teve o maior crescimento da presença no carrinho de compras foi o biscoito, com alta de 22,6% no primeiro semestre de 2022 em relação ao mesmo período do ano passado. O avanço também foi alto nos refrigerantes (17,9%) e nos snacks e salgadinhos (9,2%). Nas classes D e E, a média desses itens na compra foi superior às demais.
Chamados de itens de indulgência no jargão do varejo de alimentos, o consumo desses produtos costuma estar associado a uma busca pela sensação de recompensa em momentos de dificuldade.
Para Luiza Zacharia, diretora da Horus, outra possibilidade é que essa categoria de baixo valor nutritivo, que reúne um grupo grande de produtos de menor desembolso, esteja sendo usada para saciar a fome de famílias de baixa renda, especialmente as crianças.
Segundo a pesquisa da Horus, o aumento do consumo desses produtos ganhou destaque entra as classes sociais de menor poder aquisitivo. Frutas, legumes e verduras, por sua vez, perderam presença na cesta de compras.
“Isso pode indicar uma procura por itens mais baratos para enganar a fome, porque snacks, salgadinhos, biscoitos e refrigerantes têm produtos de baixo valor, que custam R$ 1, R$ 2. Então, por um momento de necessidade, serve para enganar a fome e até vir a ser a próxima refeição”, diz Zacharia.
Sobras fazem parte do cardápio do brasileiro
Agora, além do soro do leite, vendido como alternativa ao longa vida diante da disparada de preços, supermercados nas periferias Brasil afora têm comercializado itens como feijão fora do tipo, pontas de frios —bandejas com restos de queijo e presunto—, carcaça e pele de frango.
No Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, a reportagem da Agência Mural para a Folha de S. Paulo encontrou ao lado do feijão comum o chamado “feijão fora do tipo”, composto por 70% de grãos inteiros e 30% feijão bandinha [partido], segundo o site da marca Solito Alimentos. A venda dele é autorizada desde que esteja identificado, “cumprindo as exigências de marcação e rotulagem”.
No mercado, esse tipo de feijão saía a R$ 8,48, enquanto o carioca tradicional da mesma marca custava R$ 9,98. Na mesma loja, pontas de frios eram vendidas como promocionais, com pedaços de restos de queijo.
No Grajaú, também na zona sul da capital de SP, mercados e açougues estavam vendendo carcaça e pele de frango em sacos plásticos e bandejas. No mercado Fonte Nova, em Guarulhos, na Grande São Paulo, uma caixa de leite varia de R$ 8 a R$ 10. Por ali, subprodutos como soro de leite e misturas condensadas se tornaram a alternativa mais barata.
“A qualidade não é a mesma, e honestamente não gosto de consumi-los, porém necessito levar algum leite para casa”, diz uma aposentada de 53 anos, moradora do Jardim Cocaia, que pediu para não ser identificada. Ela paga, no máximo, R$ 7 para adquirir o soro, valor que faz diferença no fim do mês.
Famílias consomem pele e carcaça
Com mais de 15 milhões passando fome no Brasil, cresce o número de pessoas que se alimentam de produtos como carcaça e pele de frango comprados ou obtidos por doação.
“Comer pé, carcaça, aqui em casa tá sendo luxo quando tem. Nem ovo a gente pode comprar mais, porque tá caro”, relata Ionara Jesus, moradora de São Paulo (SP).
A desempregada busca sustento para quatro filhas. “Esses dias aqui em casa, para te falar a verdade, nem carcaça tô podendo comprar, porque não tá sobrando nem para isso.”
Com dois filhos, Elizabete Almeida Leite, de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, recebe doações de uma vizinha. “Eu ganho pele de galinha, carcaça, gordura de porco e de boi. É uma senhora aqui onde eu moro que cata reciclagem, então ela pede no mercado as coisas, e ela me ajuda muito”, relata.
Elisabete, que está desempregada e depende do Auxílio Brasil, recebe doações de uma conhecida que trabalha em um restaurante. “Jogavam as peles de frango fora, mas agora mandam para mim, que faço frita com a comida, com o tomate.”
Falta de políticas públicas
Enquanto o presidente Jair Bolsonaro (PL) tenta emplacar uma PEC eleitoreira, faltam políticas públicas para frear a inflação e amparar as famílias em situação de insegurança alimentar, uma vez que a proposta de R$ 600 para o Auxílio Brasil só vai até dezembro deste ano.
A justificativa de que a alta dos preços é um fenômeno global vem sendo repetida à exaustão pelo governo de Jair Bolsonaro (PL), reverberada por seus apoiadores e também por boa parte da imprensa brasileira. Mas é possível culpar a pandemia, o comportamento das commodities e a guerra na Ucrânia pelo descontrole da inflação dos alimentos no Brasil?
O que a cenoura, a batata, as frutas, a carne, o açúcar, o óleo de soja e o café produzidos e consumidos aqui têm a ver com isso? Como explicar uma inflação que parece fora de controle no país que é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo? Em 16 anos, os alimentos acumulam alta de 230%, bem acima dos 141,5% registrados pelo IPCA neste mesmo período.
Embora tenha impactado os preços por aqui, o cenário internacional não dá conta de explicar características próprias da inflação brasileira. A dinâmica de formação dos preços dos alimentos está relacionada, em grande medida, a fatores internos.
Política cambial, primarização do comércio exterior, desindustrialização, saldo da balança comercial, concentração de terra e mercado de commodities podem soar como um balaio sortido de um economês incompreensível para a maioria das pessoas.
Mas é o conjunto desses fatores e a interrelação entre eles que impacta, direta ou indiretamente, o preço e a disponibilidade da comida que chega na mesa. Ou seja, o buraco é bem mais embaixo. E, sem entender esse buraco, não há como sair dele. Aliás, no curto prazo não há nada no horizonte que permita ter otimismo quanto ao fim desse ciclo inflacionário.
“São dois problemas conexos, mas distintos. Existe um problema conjuntural externo e existe um problema estrutural brasileiro na própria relação do Brasil com o mundo”, avalia Guilherme Delgado, pesquisador aposentado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra).
Alimentos descartados são aproveitados
Jorge Toquetti, diretor-geral da ONG Banco de Alimentos, diz que a ONG aproveita alimentos que iriam para descarte por terem perdido características comerciais, como frutas deixadas de lado em supermercados.
“Passamos recolhendo estes alimentos, fazemos nova triagem dos bons para consumo, e os encaminhamos para cerca de 60 instituições, que atendem por volta de 25 mil pessoas cotidianamente.”
A ONG também trabalha com a conscientização de que partes de alimentos comumente vistas como sobras, como cascas, talos e sementes, podem ser mais bem aproveitadas, com benefícios à saúde. “Muitas vezes essas partes dos alimentos são as mais ricas em proteínas e vitaminas.”
Já a carcaça e pele de frango não entram na distribuição. “Não distribuímos, não consideramos isso como aproveitável para a alimentação.”
Rodrigo Afonso, diretor-executivo da ONG de combate à fome Ação da Cidadania, diz que o consumo de produtos comumente descartados, como carcaça e pele de frango, faz parte da rotina de dezenas de milhões de brasileiros, que recorrem a esse tipo de alimentação para colocar alguma proteína na mesa.
Segundo relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), 61,3 milhões (cerca de 3 em cada 10 habitantes do Brasil) convivem com algum tipo de insegurança alimentar. Destes, 15,4 milhões estão em insegurança alimentar grave, ou seja, passam fome.
Afonso explica que na insegurança alimentar grave predomina a alimentação de restos ou alimentos muito baratos. “A pessoa não tem nada para comer. Então ela vai todo dia tentar, ela acorda precisando correr atrás do que vai comer naquele dia, e nesse processo come qualquer coisa que apareça. Consome sobras de alimentos de outras pessoas, alimentos no lixo ou compra as coisas mais baratas possíveis, como biscoitos, para tentar de alguma forma se alimentar.”
Brasil tem uma das maiores inflações do mundo
A inflação do Brasil segue entre as maiores do mundo e bem acima da média das grandes economias do mundo. É o que mostra o novo relatório divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no início deste mês.
No G20, grupo dos países mais ricos do mundo, o Brasil está atrás somente da Turquia, Argentina e Rússia.
Em média, no G20, a inflação em 12 meses atingiu 8,8% em maio, contra 8,5% em abril. No grupo dos países do G7, a taxa cresceu de 7,1% para 7,5% no mesmo período.
Enquanto isso, no Brasil a inflação no acumulado de 12 meses atingiu 11,7%, apesar de ter desacelerado em maio.
A OCDE reúne um conjunto de 38 países e, em média, a inflação ao consumidor chegou a 9,6% em maio e atingiu o maior patamar desde agosto de 1988.
De acordo com o relatório, a inflação ano a ano aumentou em todos os países da OCDE, exceto na Colômbia, Japão, Luxemburgo e Holanda.
O documento destaca que a inflação se tornou um fenômeno mundial em razão, principalmente, da disparada dos preços dos combustíveis, energias e alimentos. No entanto, ainda assim, as taxas de dois dígitos, como as do Brasil, ainda são exceções nas maiorias das economias do mundo.
No G20, apenas a Turquia (73,5%), Argentina (60,7%) e Rússia (17,1%) possuem inflação acima de 10% ao ano. Entre os países que integram a OCDE, dez tem taxas de dois dígitos ao ano. São eles: Estônia (20%), Lituânia (18,9%) e Letônia (16,9%).
Além destes países, apenas outros três integrantes tem taxas acima da brasileira: República Tcheca (16%), Polônia (13,9%) e Eslováquia (12,6%).
Com informações da Agência Mural e Folha de S. Paulo