Em 2020, publiquei um pequeno livro, que eu mesmo chamei de panfleto, intitulado “O Sentido Perdido da Revolução”, cujo subtítulo era “Autocrítica Não Autorizada da Esquerda Brasileira”. A pandemia praticamente impediu um lançamento e um debate mais amplo sobre a publicação. Este pequeno livro tentava entender a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 e a ascensão de um novo tipo de fascismo no mundo e no Brasil. E, ao mesmo tempo, resgatar, principalmente para os mais jovens, o significado da revolução considerada como um novo mito surgido com o advento do capitalismo.
O primeiro capítulo tem como título “A Palavra Que Veio das Estrelas”, referindo-se ao conceito original que definia como revolução “o tempo gasto por um corpo celeste, ao redor do outro, num movimento circular e elíptico que volta à sua posição original. Ao contrário, portanto, do sentido político, social e econômico, quando os movimentos revolucionários constituem-se em mudanças sempre ao futuro”. Reconheço o meu encantamento, talvez exagerado, com a palavra mais importante da minha vida.
Cinco anos depois da eleição de Bolsonaro no Brasil, o candidato da direita radical Javier Milei se elege presidente da Argentina. Discordo, respeitosamente, do deputado Guilherme Boulos quando ele afirma que a eleição de Milei é uma repetição da história como tragédia e como farsa, tomando como referência a vitória de Bolsonaro em 2018. Não é. Em minha opinião, trata-se de mais um episódio de um processo que não começou com Bolsonaro nem vai acabar com Milei. A eleição de Milei é parte de um processo de avanço da direita radical que se observa em boa parte do mundo.
Milei, tal como Bolsonaro, morderá e assoprar. Blefará com ameaças radicais que não vai cumprir ao pé da letra. Só que ele é mais inteligente, mais preparado teoricamente, mais radical e mais autêntico que Bolsonaro. Além do empresariado, conta com o apoio de boa parte da juventude argentina. Representou uma suposta mudança no revezamento entre liberais democratas e o peronismo. Portanto, é mais perigoso que Bolsonaro.
E onde a esquerda tem uma cota de responsabilidade no ressurgimento do fascismo? Assim como aconteceu em várias partes do mundo em que a esquerda chegou democraticamente ao governo e passou a administrar o capitalismo e a se adaptar ao seu modelo político, no Brasil o processo começou com o primeiro governo de Lula e o compromisso assumido com o capital na Carta aos Brasileiros.
Por outro lado, o nosso compromisso com a democracia conduziu-nos a uma certa adaptação ao “status quo”, esvaziando de conteúdo transformador e revolucionário a nossa prática política. Nossos governos avançaram em muitas áreas sociais, mas sempre na medida da conciliação com as forças políticas fisiológicas, patrimonialistas e muitas vezes corruptas.
A necessária composição com o centro nos levou a perder a identidade política e ideológica. Mesmo os avanços sociais eram atribuídos aos governos e não à mobilização popular. Não eram conquistas de novos direitos, como nos processos revolucionários ainda que pacíficos e democráticos, mas concessões governamentais. O esvaziamento dos movimentos populares e a, digamos, plasticidade excessiva da esquerda acabou por nos colocar entre as forças políticas mais atrasadas. Aos olhos de uma parte do povo somos todos “políticos”, direita, esquerda, centro. Um único “sistema”.
A defesa da democracia como um valor universal confundiu-se com a defesa da ordem constituída que, embora democrática, é também injusta, socialmente deficiente e, em certa medida, marcada com a corrupção em todos os poderes.
E é dessa equação difícil de resolver que surgem os heróis e os palhaços anti-sistema, como Trump, Bolsonaro, Milei e outros. Sequestram a linguagem e os métodos dos antigos revolucionários, embora largamente financiados e apoiados pelo verdadeiro “sistema”. Colocam-se como anti-sistema no plano da política, utilizam e manejam muito bem as novas formas de comunicação com palavras de ordem simples e claras que se conectam com os rancores da classe média, com os medos religiosos dos mais pobres e com os preconceitos de raça, gênero e sexualidade. Aproveitam-se dos exageros identitários da esquerda para defender uma ideia de grandeza da pátria mas não hesitam em se alinharem internacionalmente contra o “comunismo” que passou a ser confundido no plano moral com promiscuidade, corrupção e anti-religiosidade.
Retomam o sentido revolucionário dos primeiros anos do capitalismo e confundem, deliberadamente, a liberdade do capital com a liberdade das pessoas. Não hesitam em mentir e utilizarem-se das ameaças e intimidação.
Essa disposição “revolucionária” outorga aos fascistas modernos uma certa permissão para a transgressão e defendem, por exemplo, o direito da polícia matar mediante a utilização do instituto dos autos de resistência, o direito de mentir e de falsificar desde que em defesa da Pátria, da Família e da Liberdade. E avançam no Brasil contando com uma base social bem consolidada entre policiais militares, evangélicos pentecostais, donos e empregados de empresas de segurança, milicianos, donos e usuários de academias esportivas, pequenos empresários, funcionários públicos enojados com a corrupção, grandes empresários rurais, pequenos empresários urbanos.
Principalmente, conta também com a simpatia da alta burguesia financeira, industrial e comercial, que fecha os olhos para os maus modos “revolucionários” mas adora a ideia de não pagar impostos, de conter reivindicações trabalhistas, de reviver para depois exorcisar, ainda que falsamente, o fantasma do comunismo.
Essa ultra-direita no Brasil foi derrotada eleitoralmente no Brasil em 2022 por uma diferença muito pequena de votos, apesar da frente ampla que nos possibilitou ganhar. E o próprio presidente Lula reconhece que, apesar de nossa vitória, ela continua existindo. E de alguma forma mais mobilizada que a esquerda.
O centro progressista e democrático brasileiro, composto por grande parte do PT e grande parte dos partidos de esquerda aliados, tentam avançar socialmente no governo. E o centro-direita representado pelo Centrão fisiológico, patrimonialista e dinheirista continua dando as cartas e submetendo o governo do presidente Lula a fazer concessões inconcebíveis. O sistema financeiro que sequestrou a política e submete o desenvolvimento econômico aos seus interesses, continua praticamente intacto, apesar dos pequenos avanços da Reforma Tributária e das taxações de alguns poucos setores que até então não pagavam nem impostos.
Estruturalmente, algum avanço inovador se observa numa nova política industrial baseada nas novas tecnologias e na economia criativa, exatamente no ministério do discreto e moderado Geraldo Alckmin, nosso Vice-presidente da República.
Como anunciado no título, essa foi uma tentativa de diagnóstico. Em seguida, num próximo artigo, tentarei apontar alguns caminhos para recuperar o sentido da revolução na esquerda brasileira. E para equacionar a questão do compromisso democrático e da defesa da ordem constituída.
Domingos Leonelli
Secretário Nacional de Formação Política do PSB