O diário francês l’Humanité estampou na capa de sua edição desta quarta-feira (22) o crescimento do militarismo no governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
No texto, cujo título diz “Brasil nas garras dos militares”, o jornal afirma que embora o Brasil seja “tradicionalmente comprometido com a soberania, as forças armadas do país têm se alinhado a Washington, enquanto completam sua conversão ao ultraliberalismo”. “Nunca, desde a ditadura, um governo contou tantos oficiais em suas fileiras”, diz o periódico.
De acordo com L’Huma, em uma “demonstração impressionante da transformação do Brasil em um protetorado militar dos Estados Unidos (já anunciado na venda [da Embraer] à Boeing, em 2018)”, o Brasil cedeu a base de lançamento espacial de Alcântara ao governo norte-americano. O texto afirma que desde a instalação do presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro, e seu governo, no início de 2019, foi dado o tom, com as declarações do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, sobre a instalação de uma base no território.
Apontando “o oposto da” estratégia de defesa nacional “adotada em 2008, sob o governo Lula, que celebrou um “Brasil independente”, “Jair Bolsonaro soube agregar ao seu redor forças heterogêneas e até centrífugas”, “em uma democracia fraturada pelo golpe de estado de 2016”, fazendo do “apoio militar a espinha dorsal dessa construção política, dominada pelo ultraliberalismo autoritário”.
Transformação liberal
“Uma nova direita está tomando forma, na articulação do anticomunismo, do fundamentalismo religioso e do fundamentalismo de mercado. Nesse movimento, o exército está concluindo sua transformação liberal, enquanto oficiais de alto escalão comemoram a ‘libertação da energia nacionalista’ que, segundo eles, é permitida pela eleição do favorito”
O jornal prossegue, argumentando que o avanço pode ser constatado nas diferentes estruturas do governo. “À frente de todos os ministérios estratégicos, presentes nas bancadas do Congresso, instalados em todos os níveis do aparato estatal, estão os militares, mais numerosos no governo que sob a ditadura, hoje são os verdadeiros mestres da política de demolição social, desregulamentação e privatização de empresas nacionais iniciadas sob Michel Temer e ampliadas por Jair Bolsonaro”.
Carreira militar
“A carreira parlamentar sem brilho e longa (1991-2019) deu a Jair Bolsonaro tempo para imaginar seu regime ideal, com instituições democráticas privadas de independência. Desde que assumiu o poder, ele tem atacado o Congresso várias vezes, na esperança de transformá-lo numa instância a seus pés”.
“No final de fevereiro, ele [Bolsonaro] enviou um vídeo a aliados, pedindo manifestações para defendê-lo dos poderes legislativo e judiciário, ‘inimigos do Brasil’, acusados de impedi-lo de trabalhar – na verdade, de passar textos inconstitucionais” e “especialmente culpados, aos seus olhos, por possuir a chave para um processo de impeachment (40 pedidos apresentados nesta direção)”, diz adiante.
Augusto Heleno e o golpe ao Congresso
O diário também analisa que os passos têm sido “apoiados pelo chefe do gabinete de segurança da presidência, general Augusto Heleno, um velho nostálgico da ditadura que diminui regularmente a autoridade do Congresso e promete um golpe se a Suprema Corte quiser tornar possível o impeachment”.
A seguir, o jornal francês aponta que o descrédito direcionado ao Congresso, onde ele não possui a maioria, anda de mãos dadas com sua cruzada ideológica. “Para Bolsonaro, o ‘parlamentarismo absoluto’ seria imposto pela esquerda e pela imprensa. A justiça se alinha pela nomeação de magistrados comprometidos com sua causa e responsáveis por transformar o sistema judicial em uma máquina de guerra contra a oposição”.
Trump à brasileira
O periódico também recorda que, como Donald Trump, Bolsonaro demonstra desprezo pelos jornalistas, incentiva ataques a repórteres durante protestos do governo e pichações incentivando a “matar um jornalista por dia” e alerta: “as contenções institucionais ainda restringem o chefe de estado. Mas por quanto tempo?”
“Um a um, o governo está desmantelando os órgãos de controle ambiental que impedem seus planos, como a lei que favorece a exploração agrícola e mineira de territórios indígenas. Em um país à deriva, onde o desemprego está crescendo rapidamente, a devastação causada pelo coronavírus e a necropolítica escolhida por Bolsonaro em nome da ‘preservação da economia’ poderia, no entanto, reorganizar as cartas. Os soldados estão começando a enviar uma mensagem: não importa quanto ocupem todos os cargos de tomada de decisão no setor de saúde, eles não são responsáveis pelos erros do presidente – já objeto de várias queixas perante o Tribunal Penal Internacional”.
O Humanité também comenta que Jair Bolsonaro pode ficar tentado a consolidar seu poder a partir do artigo 142 da Constituição, que o autoriza a usar as forças armadas para manter a “lei e ordem” contra o Parlamento.
“Mesmo que isso signifique enfraquecer a coesão do exército. Os militares embarcariam nessa aventura? Se a razão prevalecer, o presidente Bolsonaro, um capitão expulso do exército por planejar detonar bombas em um banheiro de quartel, poderá se encontrar novamente em um assento de ejeção”, diz.
Política ambiental
Em um box à parte, o jornal também recorda o aumento do desmatamento e o impacto da política ambiental sobre os fundos internacionais de investimentos.
“Este ano pode ser mais mortal que 2019 para a Amazônia. Com 2.248 incêndios identificados em 1º de julho e um aumento 19,5% em um ano, a região estabelece o pior recorde em treze anos. Esses incêndios, principalmente de origem criminosa, são responsabilidade do presidente Bolsonaro. ‘Espero que esse sonho continue concretizar’, ele disse, em fevereiro, sobre o projeto de lei para promover a exploração mineral e agricultura de territórios indígenas.
“Os garimpeiros e os ladrões de madeira aproveitaram a redução de monitoramentos policiais ambientais em tempos de Covid-19 para se envolver em ataques ilegais que levaram a à destruição de 2 mil km2 de floresta. Uma situação que tem provocou novamente um clamor internacional”, ressalta.
“Reações que irritam Bolsonaro, que não hesitou em qualificar as notícias internacionais – e em particular as da França – pela proteção da Amazônia como comportamentos ‘coloniais’ que minam a soberania nacional”.