
A delegada responsável pela Operação Lume, da Polícia Federal (PF), Denisse Ribeiro, foi retirada da investigação 14 dias depois de pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma busca e apreensão no Palácio do Planalto, sede do governo federal. O pedido para a realização da segunda fase da ação, que investiga a organização e o financiamento de atos antidemocráticos, foi feito em 25 de junho de 2020.
Os alvos da delegada da PF seriam a Secretaria de Comunicação da Presidência da República, que funciona dentro do Planalto e tem repartições na Esplanada, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, os endereços do secretário de Comunicação Fabio Wajngarten e um canal bolsonarista no YouTube.
Cinco dias depois, outro delegado, Fábio Shor, pediu ao STF buscas nas três agências de publicidade com contratos com a Presidência: Artplan, Calia e NBS-PPR. O objetivo das buscas era procurar provas de que agentes públicos distribuíram verbas do governo para canais bolsonaristas que incitavam movimentos na internet e nas ruas pelo fechamento do Congresso Nacional e do Supremo e a volta da ditadura militar e do AI-5 (Ato Institucional número 5), o mais duro dos anos de repressão.
Delegada não poderia conduzir investigações
Oito dias depois de o pedido ser enviado ao STF, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se reuniu com André Mendonça, então ministro da Justiça (pasta na qual a PF está alocada), de acordo com a agenda oficial de 2 de julho. Em 6 de julho, Mendonça se encontrou com o então diretor-geral da PF, Rolando Alexandre Souza.
Após esses encontros, no dia 9 de julho, mais precisamente ao meio-dia, o diretor de Combate ao Crime Organizado da PF, Igor Romário, transferiu, por ordem de Souza, a investigação do setor de Denisse para o Serviço de Inquéritos (Sinq), órgão que também funciona na sede da PF. A justificativa oficial da direção era que só o Sinq poderia conduzir investigações (o SPE, onde Denisse estava lotada, é um setor administrativo e de planejamento).
A pedido da corporação, a policial fez um relatório parcial das investigações que incluía, também, a informação sobre sua saída. O documento foi remetido ao relator do caso no STF, ministro Alexandre de Moraes. Àquela altura, porém, já existia uma ordem do próprio ministro do STF para que ela e outros delegados fossem mantidos no inquérito dos atos antidemocráticos.
Denisse retomou as investigações na noite do dia seguinte, 10 de julho, uma sexta-feira, depois da objeção da Corregedoria da PF. As buscas, porém, nunca foram realizadas. A assessoria da Polícia Federal não prestou esclarecimentos e não forneceu cópia do processo de mudança dos delegados do caso. O Palácio do Planalto não comentou.
Segundo reportagem do Uol, em dezembro do ano passado, a PF pediu para aprofundar investigações na “hipótese criminal” segundo a qual o presidente Bolsonaro e seus filhos mobilizaram redes sociais para atos antidemocráticos nas ruas.
O perfil Bolsonaronews, rastreado no pelos policiais no inquérito, foi acessado da casa de Bolsonaro no Rio de Janeiro e do Palácio do Planalto. Mas, em junho deste ano, a Procuradoria-Geral da República (PGR), comandada por Augusto Aras, deu parecer para arquivar as investigações.
Ministro não autorizou nem negou buscas
Em parecer emitido em 31 de agosto, a PGR destacou “a gravidade da natureza das medidas de busca e apreensão”. “É que conforme se constata da expressão da autoridade policial, representou-se pelas medidas ostensivas não apenas nas sedes das ministeriais [sic] como, igualmente, em ‘todos os locais que potencialmente guardem relação com os fatos'”, escreveu o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques de Medeiros, número 2 de Augusto Aras.
Jacques disse que os documentos poderiam ser obtidos sem buscas, com o uso de ofícios a serem feitos por uma investigação cível realizada pelo Ministério Público Federal (MPF) de primeira instância.
Moraes, do STF, analisou o caso em 9 de novembro, mas não autorizou nem negou as buscas: apenas perguntou à polícia se ainda havia interesse na medida. Em resposta, a delegada respondeu que 140 dias já haviam se passado desde o pedido e que a demora havia inviabilizado as buscas.”O tempo decorrido resultou na perda de oportunidade, bem como vulnerabilizou o sigilo da ação”, queixou-se.
A delegada afirmou, ainda, que o pedido de documentos feitos pelo Ministério Público por meio de ofícios, conforme sugerido pela PGR, poderia “alertar os detentores de informações relevantes”.
Motivos para saída de delegada
De acordo com a matéria do Uol, o diretor-geral da PF da época, Rolando Alexandre Souza disse que a saída de Denisse do caso não teve a ver com o pedido de buscas feito por ela.
“Alexandre de Moraes (…) é o presidente do inquérito e, se existe alguém que não admitiria qualquer interferência, seria ele. Se ele não se importou com base em tudo que foi dito e explicado, o que dirá os outros”.
Rolando Alexandre Souza
Souza disse que, apesar de o primeiro despacho ordenar a troca de setor e de delegados do caso, Denisse iria conduzir as investigações da Operação Lume, mas em outro setor. “Ela iria junto: o inquérito iria para o Sinq, com ela junto”, afirmou ele à reportagem, por telefone. “Só que ela não quis ir pro Sinq.”
O ex-diretor da PF contou ter discutido o tema por telefone com Moraes, do STF, explicando a situação. “O único local na sede em que se toca inquérito é dentro do Sinq.” Segundo ele, definiram que a delegada continuaria no caso, mas na unidade regional de Brasília.
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A reportagem perguntou se Souza tratou do tema com o então ministro da Justiça, André Mendonça. “Todo mundo sabia”, respondeu. Ele afirmou que o conhecimento dele se deveu a notícias na imprensa à época. Souza afirma não ter tratado da possível busca no Planalto na conversa com Moraes: “Nunca ninguém falou de mandado de busca”. A reportagem questionou se ele foi informado da busca e apreensão no Planalto, mas não houve resposta.
A assessoria do ex-ministro da Justiça André Mendonça disse que ele não comentaria, mas interlocutores informaram que ele desconhece o tema. Igor Romário e Denisse Ribeiro não quiseram dar entrevistas.
Pilar do mercado é a transparência, diz Wajngarten
Alvo de um dos mandados que não foram cumpridos, Wajngarten disse ao Uol que a Secom não direcionou verbas para sites “de qualquer espectro político” e que não vê motivo para a inclusão de seu nome nas investigações. “Eu não posso concordar com uma premissa que não está correta”, afirmou.
Sobre as suspeitas de que o dinheiro do governo irrigou canais de conteúdo antidemocrático, Wajngarten lembrou que a Secom esclareceu, à época do inquérito, que os pagamentos inadequados foram descobertos e o Google corrigiu o problema, reembolsando o governo nestes casos.
“Há que se ter transparência nas relações entre anunciantes, agências, veículos e fornecedores. O principal pilar do mercado publicitário é a transparência”.
Fabio Wajngarten
Canais receberam R$ 5,6 mi do YouTube
O canal que mais arrecadou foi o Folha Política, com 2,44 milhões de inscritos. Sozinho, embolsou entre junho de 2018 a maio de 2020 quase R$ 2,5 milhões com monetização no YouTube, de acordo com a cotação do dólar de segunda-feira (14). Em seguida vem o Foco do Brasil —canal com 2,59 milhões de inscritos que, segundo as investigações, recebia sistematicamente conteúdo produzido pelo assessor da Presidência Tercio Arnaud Tomaz, líder do chamado “gabinete do ódio”. O Foco do Brasil recebeu R$ 1,55 milhão entre março de 2019 e maio de 2020.
Já o canal Giro de Notícias —que possui 1,26 milhão de inscritos— arrecadou pouco mais de R$ 1,1 milhão entre dezembro de 2018 e maio de 2020. De acordo com o MPF, em julho de 2020, após a Operação Lume mirar influenciadores bolsonaristas envolvidos em atos antidemocráticos, diversos canais começaram a deletar vídeos contra o STF e o Congresso.
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O Giro de Notícias foi um dos que mais adotaram essa estratégia. “Menos de um ano depois, em fevereiro de 2021, Alberto Junio da Silva, do canal ‘O Giro de Notícias’, já havia apagado 1.398 vídeos, a maior parte deles relacionados a ataques contra Supremo Tribunal Federal”, diz o subprocurador da República.
Também chama a atenção na lista a presença de pessoas com participação destacada na organização dos atos antidemocráticos. A ativista de extrema-direita Sara Winter, líder do grupo 300 do Brasil, e o blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio obtiveram recursos com monetização de conteúdo no YouTube —ambos já foram presos por ordem do STF.
Sara recebeu R$ 10,7 mil entre junho de 2018 e maio de 2020, enquanto a quantia arrecadada por Eustáquio foi mais expressiva —ele obteve quase R$ 17 mil em apenas um mês (entre maio e junho de 2020, justamente o auge das manifestações pedindo o fechamento do STF e um novo AI-5, decreto que endureceu a ditadura militar).
Envolvidos negam postura antidemocrática
A PF queria buscas em três agências de publicidade contratadas pela Secom, a Artplan, a NBS-PPR (Profissionais de Publicidade Reunidos) e a Calia. A Artplan disse ao Uol que “faz a autorização de campanhas em mídias digitais (Google, Facebook entre outros) para todos os seus clientes através das plataformas próprias dessas mídias que utilizam algoritmos para a escolha dos canais de publicação”.
A Calia afirmou ignorar o pedido de apreensão, mas destacou que os serviços prestados ao governo “têm o constante acompanhamento e auditoria periódica da Controladoria-Geral da União (CGU) e do Tribunal de Contas da União (TCU), e já foram objeto de análise do MPF mediante a disponibilização de ampla documentação das campanhas realizadas”.
A agência NBS-PPR não comentou o assunto. Já o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos afirmou que o fato de as buscas não terem sido realizadas “demonstra que este Ministério jamais teve qualquer envolvimento com os fatos relatados”. Anderson Rossi, dono do Foco do Brasil, afirmou que seu canal é uma “mídia jornalística” e que só “noticia as ações e declarações do presidente da república”.
PGR “sempre quis” continuar investigação
A PGR afirmou que foi contrária às buscas com base no que explicou ao Supremo. “Buscas e apreensões são medidas extremas e invasivas e que, portanto, só devem ser tomadas nos casos em que outras providências menos gravosas se revelem insuficientes para a obtenção de informações”, justificou o órgão.
Em nota, a PGR afirmou que só tomou conhecimento do pedido de buscas em 16 de julho, “período de férias”. “A equipe analisou de forma minuciosa os autos e se manifestou ao STF em 31 de agosto após certificar-se de que essa mesma informação já estava sendo procurada pelo MPF em outro procedimento.”
O órgão sustenta que sempre desejou a continuidade das investigações, “o que não significa transigir com as garantias constitucionais do processo a quem quer que seja, sobretudo, o devido processo legal e o princípio do juiz natural”. O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, teve encontros com Mendonça e Souza nas datas dos despachos que decidiam o futuro da delegada.
Com informações do Uol