Não.
Nesse país de um bilhão e meio de habitantes que em menos de 40 anos tirou 800 milhões de pessoas da linha de pobreza, o socialismo deu certo. Socialismo de mercado, socialismo com características chinesas, capitalismo de Estado, ou qual seja a denominação que o leitor preferir, o fato do qual eu sou “testemunha ocular” em uma curta e intensa viagem por duas províncias (estados) e várias cidades, vilas e povoados, é que não vimos nada parecido com o que no Brasil chamamos de favela.
É possível que elas existam, mas não estavam à vista nas cidades de Pequim, Kunming, Changshui, Dali, Chuxiong, Xizhou e aldeias e vilas que visitamos.
Em viagem de ônibus, mais de 200 km que separam Kumming, capital da província de Yunnam até a cidade de Chuxiong, passamos por dezenas de vilarejos, aldeias, povoados e periferias de cidades. Notei que alguns dos nossos acompanhantes chineses e alguns brasileiros e latino americanos representantes dos seus partidos no IV Fórum de Partidos da América Latina e Caribe, aproveitaram para dormir um pouco. Eu não. Fiquei com meus olhos abertos o todo tempo. E cheguei a contar as pouquíssimas casas de madeira, ou construções sem reboco com os tijolos aparentes. Não chegavam a duas dezenas em todo o trajeto. A esmagadora maioria da casas e sobrados de mais de um andar eram simples, sem nenhuma graça arquitetônica, porém dignas e sólidas.
Mas o que chama atenção na paisagem urbana chinesa e também nas áreas rurais, muitas delas ao lado de áreas agrícolas, são os imensos condomínios verticais. Grandes conjuntos com mais de vinte ou trinta andares, não somente nos perímetros urbanos, mas também nas áreas contíguas às plantações e nas periferias das cidades.
A maioria desses conjuntos habitacionais não são feios nem bonitos. Embora além dos quase padronizados conjuntos habitacionais, as grandes cidades chinesas possuam belíssimos arranha-céus, exemplares de uma ousada arquitetura moderna convivendo com monumentos históricos milenares.
A mim pareceu que a verticalização habitacional foi a forma encontrada pela China para enfrentar dois aspectos da nova realidade do socialismo: a enorme redução de desigualdade e a crescente urbanização da população. Segundo a ONU mais de 500 milhões de chineses, nos últimos 30 anos, deixaram as áreas rurais para viver nas cidades.
As cidades grandes transformaram-se em megalópoles, como Xangai que passou de 11 milhões em 1982 para 24 milhões de habitantes em 2014. E cidades pequenas como Shenzen que era uma vila de pescadores com 700 habitantes, transformou-se numa cidade de mais de 11 milhões de pessoas em 40 anos.
Mas o crescimento dessas cidades e o gigantesco processo de urbanização não foi desordenado e nem orientado apenas pelo interesse do capital privado, presente na economia após a abertura de Deng Xiaoping em 1978. Grandes institutos de planejamento com milhares de arquitetos e planejadores urbanos orientaram e orientam o crescimento das cidades.
Planejamento urbano que se utiliza crescentemente de recursos tecnológicos sofisticados e Inteligência Artificial.
E o uso da tecnologia vai além do planejamento: serve também para a solução prática dos serviços urbanos. Segundo o urbanista Anthony Ling, “na China os planos de cada cidade devem ser aprovados pela instância superior: o xiangxi guilhua (Plano Detalhado), que por sua vez devem ser aprovados pela instância Regional“. E é o Ministério da Terra e Recursos Naturais que define quanta área será urbanizada a cada ano.
Os processos de urbanização, além desses institutos de planejamento, contam também com outro fator de controle social e de intervenção do Estado: a propriedade pública de toda a terra na China foi repassada aos municípios e esses fizeram contratos de arrendamento (leasing) com empresas privadas que operaram a construção dos milhões de conjuntos habitacionais em edifícios de mais de 30 andares por todas as cidades chinesas. E assim o Estado socialista deu uma grande contribuição para o desenvolvimento da indústria da construção civil da China.
Claro que além dos conjuntos habitacionais verticais as modernas cidades chinesas contam com grandes obras de infraestrutura como por exemplo o metrô de Pequim que em 1990 tinha apenas 53 km e hoje tem nada menos que 527 km de extensão.
Pontes, viadutos e autopistas podem dar a impressão de uma excessiva opção automobilística, mas isso é contrabalançado pela preservação dos “hutongs” que são bairros caracterizados por construções de pouca altura e áreas comuns nas áreas centrais das cidades. Outra contrapartida da opção automobilística é o uso amplamente disseminado das bicicletas e das motocicletas elétricas, sem falar do crescente uso dos carros elétricos.
Esse rápido olhar sobre a urbanização da China nos leva à constatação de que o socialismo com características chinesas definido como um Estado forte que centraliza o Planejamento Nacional e decentraliza as soluções locais, combina a forte presença do Estado com a atuação das empresas privadas. E está conseguindo responder positivamente a um dos grandes problemas da modernidade que é o desenvolvimento urbano.
Finalmente para provar que o socialismo não é incompatível com a propriedade privada, podendo até ampliá-la, constata-se que 90% das famílias chinesas tem seu próprio imóvel.
Domingos Leonelli
Secretário Nacional de Formação Política- PSB