A população indígena de contexto urbano é o grupo mais vulnerável no Brasil à infecção de covid-19 e tem 2,25 vezes mais chances de contrair o vírus do que os brancos. Está à frente inclusive da população negra, que fica 1,49 vezes mais exposta ao risco.
Os dados foram apontados no primeiro grande estudo brasileiro sobre a prevalência da doença por etnia e raça, o Epicovid, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Entre os entrevistados em 133 municípios brasileiros, 1.219 se declararam indígenas.
Esta pesquisa chegou a ser contratada pelo Ministério da Saúde para orientar a política de combate à pandemia. Foi até divulgada em 2 de julho de 2020, em coletiva à imprensa, já sob a gestão do general Eduardo Pazuello.
Hallal falou sobre pesquisa na CPI
O Epicovid voltou à tona em 24 de junho deste ano com o depoimento na CPI da Pandemia do epidemiologista Pedro Hallal, coordenador do estudo. Diante dos senadores, Hallal confirmou que, em 2020, a apresentação de resultados do levantamento sofreu censura, minutos antes da divulgação. O governo federal vetou justamente um dos slides (lâmina da apresentação) do estudo que mostrava quais são os grupos mais vulneráveis na pandemia, entre eles o indígena em primeiro plano.
Dias depois, em outra coletiva à imprensa, Pazuello afirmou que o Ministério da Saúde não tinha mais interesse em financiar o Epicovid. Alegou dificuldade em “transferir o raciocínio para fazer uma triangulação das ideias para efeito de Brasil como um todo”. Na ocasião, Hallal já dava entrevistas a veículos de comunicação bastante críticas à condução da pandemia pelo governo Bolsonaro.
Omissão do governo Bolsonaro com povo indígena
O maior problema não foi a censura, mas a omissão que se seguiu, já que o governo Bolsonaro jamais se mobilizou para proteger os mais vulneráveis da pandemia. O Epicovid serviria justamente para indicar a prioridade das prioridades. “É indicador de que os indígenas deveriam ter um olhar diferenciado para proteção”, destaca o professor e epidemiologista da UFPel Bernardo Horta, pesquisador premiado e um dos responsáveis com Hallal e outros médicos pelo estudo.
Embora a pesquisa tenha sido quantitativa, Horta acredita que a vulnerabilidade identificada tenha relação com questões estruturais, como a moradia, e o acesso à informação sobre meios de prevenção, além de outros fatores como o genético.
O epidemiologista lembrou ainda que os grupos de maior vulnerabilidade geralmente são também os que registram mais óbitos. Esse foi um dos motivos para a criação de prioridades nas políticas de proteção, adotadas por estados e municípios, mas ignorada por Pazuello e Bolsonaro.
A pesquisa, segundo Horta, foi feita na primeira onda da pandemia, de 14 a 21 de maio, de 4 a 7 de junho e de 21 a 24 de junho de 2020. Em três décadas de medicina, o epidemiologista afirma que nunca viu algo na dimensão da Covid-19. A crise sanitária que mais se assemelha é a gripe espanhola ocorrida há mais de 100 anos.
Para Hallal, o governo do presidente Jair Bolsonaro foi omisso. “E essa omissão causou a morte de muitos brasileiros”, disse à Amazônia Real. À CPI, Hallal já havia estimado que 400 mil óbitos por Covid-19 poderiam ter sido evitados, dos mais de 500 mil já registrados no país.
Ao contrário de outros estudos sorológicos, que detectam os anticorpos totais, capazes de revelar se a pessoa tivera contato prévio com o Sars-CoV-2 ou se já fora vacinada, o projeto do Epicovid procurou avaliar a imunidade celular e níveis de anticorpos neutralizantes. Em termos científicos, o estudo da UFPel detecta a proporção de moléculas que é capaz de neutralizar a ação do vírus. O que o Epicovid inovou foi em mostrar que populações de baixa ou média renda tendem a ter menores produções de anticorpos neutralizantes e imunidade celular, e isso deveria ser orientador de qualquer política pública séria.
Povo indígena não recebeu atendimento diferenciado
Pelo menos 35 mil indígenas, que vivem na capital amazonense não receberam atendimento diferenciado das autoridades de saúde municipal, estadual e federal. Os números são estimados pela Coordenação das Organizações dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime).
Ao não seguir as orientações do Epicovid, a pesquisa da UFPel, o governo deixou de priorizar as populações de etnias não aldeadas e mesmo as instituições de defesa dos direitos indígenas ficaram sem saber do grau dessa vulnerabilidade.
Apesar de haver uma determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Justiça Federal, o Estado do Amazonas ainda não vacinou esses povos na capital nos grupos prioritários.
Manaus é a capital emblemática da pandemia da covid-19. A cidade passou por duas grandes ondas da pandemia. A população indígena da cidade nunca recebeu atendimento diferenciado. O alto índice de contágios também não foi contabilizado pelas autoridades públicas.
Indígenas receberam ‘kit-covid’
O Ministério da Saúde distribuiu pelo menos 265 mil comprimidos do “kit-covid” – cloroquina, azitromicina e ivermectina – a população indígena em cinco estados, com o propósito de tratar infecções pelo coronavírus. Os três medicamentos não têm eficácia para covid-19.
Parte dessas drogas foi comprada diretamente por Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), vinculados ao ministério e com atuação de saúde na ponta, junto às comunidades indígenas.
Leia também: Parlaíndio reúne povos indígenas para derrubar o presidente da Funai
Secretaria de Saúde Indígena orientou uso do ‘kit-covid’
Um informe técnico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), de junho de 2020, orientou os DSEIs a “instruir seus respectivos processos de aquisição” de cloroquina e hidroxicloroquina, caso municípios e estados se negassem a fornecer o medicamento.
O envio maciço de medicamentos sem eficácia a indígenas entrou no foco da CPI da Pandemia no Senado. A estratégia da atual gestão do Ministério da Saúde e do general da ativa Eduardo Pazuello, que impulsionou a prática ao longo de sua administração na pasta, é sustentar que os comprimidos se destinaram aos tratamentos previstos na bula.
A cloroquina, por exemplo, é usada no tratamento de malária. A doença atinge cerca de 194 mil brasileiros por ano, dos quais 193 mil (99,5%) na região amazônica.
A azitromicina é um antibiótico usado principalmente no tratamento de doenças respiratórias. E a ivermectina se destina a infecções por parasitas.
Medicamentos foram para a covid-19
Documentos e registros do próprio ministério contrariam a versão de que as compras e distribuição dos medicamentos se destinaram a essas doenças, e não para covid-19.
Notas de empenho referentes a compras de azitromicina pelos DSEIs Alto Purus, no Acre, e Cuiabá registram que a aquisição do medicamento se destinou ao “enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do covid-19” ou a “medidas de controle de infecção humana pelo novo coronavírus (covid-19)”. O empenho é a autorização para o gasto.
Para o tratamento de indígenas no Acre foram adquiridos 20 mil comprimidos de azitromicina com dosagem de 500 mg. É a mesma especificação recomendada em nota técnica do Ministério da Saúde, atualizada em maio, que embasa o combo de medicamentos sem eficácia para covid-19: cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina e Tamiflu, este último recomendado para gripe.
Cada comprimido saiu por R$ 1,82. O valor total foi de R$ 36,4 mil.
A azitromicina adquirida pelo DSEI Cuiabá também tinha dosagem de 500 mg. O valor unitário foi de R$ 1,25. Os 20 mil comprimidos custaram R$ 25 mil.
Também houve compras de antibióticos por DSEIs em Mato Grosso, para os indígenas do Xingu e para os xavantes, e em Rondônia, para etnias como suruí, cinta larga e terena.
As compras são informadas num portal alimentado pelo Ministério da Saúde, chamado Localiza SUS, criado para divulgar os gastos e ações de combate à pandemia.
O mesmo Localiza SUS faz um detalhamento do envio de 100,5 mil comprimidos de cloroquina, todos eles destinados a indígenas em Roraima. O objetivo foi o tratamento de covid-19, segundo o portal.
Do total distribuído, 39,5 mil se destinaram aos yanomami em Roraima. O restante foi usado em comunidades da terra indígena Raposa Serra do Sol.
Forças Armadas também distribuiu ‘kit-covid’
Há ainda distribuições feitas pela Aeronáutica e cujos destinos a Força Aérea Brasileira mantém ocultos. Um desses transportes foi para a região chamada Cabeça do Cachorro, no Amazonas, na fronteira com a Colômbia e a Venezuela. Pelo menos 1,5 mil comprimidos de cloroquina foram transportados para o local, onde estão 23 etnias.
Também houve uma compra direta de cloroquina pelo DSEI de Vilhena (RO). Segundo os registros do Localiza SUS, a aquisição está associada a ações contra a covid-19.
É a mesma situação de aquisições de 24 mil comprimidos de ivermectina pelos DSEIs Alto Rio Negro, que atende a Cabeça do Cachorro, e Xingu, em Mato Grosso.
O Ministério da Saúde distribuiu ainda 370,2 mil cápsulas de Tamiflu a indígenas em 16 estados. A pasta registra que o medicamento se destinou ao combate à influenza, mas o Tamiflu integra o kit do chamado “tratamento precoce” de covid-19, previsto em protocolo ainda em vigência.
O ministério foi questionado sobre cada compra e distribuição a indígenas de medicamentos sem eficácia para covid-19. “O antimalárico é adquirido e enviado regularmente a 25 DSEIs que estão em área endêmica”, disse, em nota, em relação à cloroquina.
“Azitromicina e ivermectina são medicamentos que constam na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) e utilizados em diversos tratamentos de atenção primária do SUS. A aquisição de medicamentos da Rename é feita a partir das demandas de atendimento dos DSEIs”, afirmou.
Segundo o ministério, serviços básicos de saúde não foram suspensos durante o pico da pandemia. “Somente em 2020, foram realizados mais de 12,1 milhões de atendimentos nas aldeias, e contratados mais 700 profissionais para reforçar a assistência em saúde.”
Na CPI da Pandemia, no segundo dia de depoimento, Pazuello negou que sua gestão tivesse distribuído medicamentos do “tratamento precoce” aos DSEIs. A negativa ocorreu na quinta-feira (20), em resposta a questionamentos do senador Fabiano Contarato (Rede-ES).
O general da ativa contou outras mentiras em seus depoimentos na CPI, em relação a vacinas e à crise do oxigênio em Manaus em janeiro, o que despertou a reação de senadores não alinhados ao governo Bolsonaro.
Com informações do Portal Vermelho