REGISTRO Em A Arte Culinária da Bahia, Manuel Querino faz um estudo antropológico das características da culinária afro-baiana.
RAUL LODY
Especial para A TARDE
A publicação A Arte Culinária da Bahia (1928), de Manoel Querino, é um marco nos estudos das matrizes africanas no Brasil. Nesta obra Querino mostra ingredientes, sistemas alimentares e comidas iorubas que são preservadas nas receitas e nas cozinhas do Recôncavo da Bahia. Ele traz também um olhar afro-muçulmano, visto que muitas das receitas chegam de iorubas já islamizados, como, por exemplo, o arroz de hauçá, uma criação afro-baiana.
Querino apresenta, no seu livro, receitas com ingredientes nativos, e outras da cozinha colonial portuguesa. E destaca a comida como um elemento tradutor da Bahia a partir de uma cozinha africana da Costa Ocidental, de povos procedentes do Golfo do Benin, e de civilizações subsaarianas.
Nestes cenários históricos e sociais, até hoje, as cozinhas dos terreiros de candomblé são verdadeiros memoriais das cozinhas africanas, pois mantêm ingredientes, técnicas culinárias, receitas, estilos e estética dos pratos. E, por tudo isso, são verdadeiramente cozinhas patrimoniais.
As comidas dos terreiros de candomblé têm um sentido devocional tanto para os deuses como para os participantes dessas comunidades, que vivem cardápios especiais nas festas e no cotidiano da cidade do São Salvador.
Receitas de uma África marcante na vida e nos hábitos alimentares da Bahia.
Essas matrizes africanas misturam-se com ingredientes nativos, como a mandioca, que acrescida de azeite de dendê revela a nossa deliciosa farofa de azeite. E, sem dúvida, o dendê é um destaque nas receitas que mostram esta África tão marcante na vida e nos hábitos alimentares da Bahia.
Pertencimento
Em A Arte Culinária da Bahia Manuel Querino traz um sentimento de pertença que está relacionado com as histórias pessoais, e que se misturam com as muitas maneiras de ver e de interpretar as matrizes africanas através de uma comida que faz parte de uma Bahia do final do século XIX e início do século XX.
Por exemplo, as chamadas “comidas verdes”, que são aquelas feitas a partir de folhas, e de outros ingredientes vegetais: maniçoba, efó, caruru; amalá, também de quiabos; ou até mesmo o molho lambão, molho fresco com tendências verdes, são destacadas por Querino em leituras especiais sobre o latipá ou amori.
Diz Querino:
“Latipá ou amori feitas com folhas inteiras de mostardeira, as quais, depois de fervidas, temperavam como o efó e deitavam a frigir no azeite de cheiro”
(A arte culinária da Bahia). WMF Martins Fontes. Organização e notas Raul Lody.
Querino, assim, aproxima o latipá ou amori do efó quando informa que os temperos são os mesmos: malagueta seca e ralada, sal, dendê e camarões defumados.
Latipá ou amori e o efó são acompanhamentos consagrados para peixes; e para as comidas brancas, sem condimentos, como as bolas de inhame, o acaçá branco, a massa e o arroz; que são assim harmonizadas com as comidas mais condimentadas da mesa afro-baiana.
Assim, muitas dessas receitas trazem imaginários, formas e sabores, que são preservados nas tradições dos muitos terreiros de candomblé da Bahia, e que são repetidas nas casas, nas festas de largo, nas feiras e nos mercados populares; como também em alguns restaurantes.
Deste modo, vê-se a identidade das cozinhas de matriz africana até hoje como uma marca da diversidade das comidas da Bahia.
Raul Lody é Antropólogo, Pesquisador, Pensador da Comida e da Alimentação.
Gastronomia