
Cena do filme de Marcelo Gomes. Foto: Divulgação
*Por Cynara Menezes, editora da página parceira Socialista Morena
A certa altura de Estou me guardando para quando o carnaval chegar, documentário de Marcelo Gomes, o cineasta pergunta a uma sarcástica senhora de Toritama se ela também está no negócio do jeans, em que praticamente todos os habitantes da pequena cidade do agreste pernambucano estão engajados.
“Eu não. Sou agricultora”, ela responde, com orgulho.
Com cerca de 40 mil habitantes, Toritama, a “capital nacional do jeans”, é responsável pela produção de 20 milhões de peças anuais ou 20% do total da produção do país. Em cada casa por onde o diretor passa com sua equipe há fabriquetas instaladas, com pessoas costurando, cortando, tingindo ou fazendo rasgos em calças, minissaias, macacões… Nas calçadas, em vez das famílias conversando de sua infância, idosos passam os dias fazendo acabamento nas peças em troca de tostões.
A agricultora entrevistada por Marcelo é uma das poucas personagens que de fato tem uma profissão, um ofício, por ali. Os demais são costuradores de bolsos, pregadores de colchetes, fazedores de pregas… Tarefas que exercem de forma absurdamente repetitiva, dia e noite, enquanto têm a ilusão de que são senhores do próprio tempo.
“Começo de manhã, vou pra casa almoçar, volto para cá, depois vou pra casa jantar e retorno para trabalhar até as 10 da noite”, conta uma costureira ao diretor, ressaltando a “vantagem” de poder fazer “o próprio horário”. Outra moça se orgulha de ser “dona” do seu tempo porque fica de domingo a domingo costurando bolsos em casa, sem perceber que o filhinho pequeno que mendiga sua atenção será um homem feito quando ela se der conta disso… Ganha 10 centavos por bolso. “Se eu fizer 1000 bolsos num dia, ganho 100 reais”, comemora.
O paradoxo do trabalhador sem garantia alguma, sem direito trabalhista e sem aposentadoria que é “dono do próprio tempo” fica evidente quando, às vésperas do carnaval, os moradores de Toritama se desesperam com a possibilidade de não viajar para curtir a folia na praia. São capazes de vender tudo o que têm para sair dali e ter direito a ser, pelo menos uma vez por ano, indivíduos capazes de se divertir, dançar, viver –ou simplesmente ficar sem fazer nada, algo raro em seu cotidiano.
No resto do ano, são apenas parte de uma grande engenhoca fabricadora de jeans que os usa como parafusos, polias, engrenagem. Robôs humanos que chuleiam, caseiam e bordam. Não há lugar ali para o talento; ninguém será cantor, ator, arquiteto, agricultor ou matemático. Toritama é uma versão nordestina e bem real do filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin.
Como no clássico do cinema, o “vagabundo” que traz algum lirismo à história é Leo, que Marcelo Gomes flagra cochilando em pleno expediente. Um “loser” que não se encaixa na linha de produção e ora arranca tocos, ora tinge tecidos, ora se vira como pedreiro… A graça de Leo é não ver em “ganhar dinheiro” a única razão de existir, o único “sonho” citado pelos moradores de Toritama.
Quem ainda não entendeu a noção de “precariado” do economista britânico Guy Standing vai entender perfeitamente. A cidade pernambucana é um microcosmo do mundo ideal do neoliberalismo de Temer e Paulo Guedes: jornada de 14 horas por dia, mulheres acumulando o serviço doméstico, sem licença maternidade e às voltas com doenças laborais, como as lesões por esforço repetitivo, dores na coluna e nas vistas. “Talvez, no futuro, seremos uma grande Toritama”, disse o cineasta em entrevista ao Jornal do Commercio.
E então nossas vidas se resumirão a trabalhar e dormir, como era no mundo antes da jornada das 8 horas, sem direito a lazer, a cuidar dos filhos, a amar, a fazer o que quisermos do nosso tempo livre. Servos voluntários sem sequer nos darmos conta disso, como o povo de Toritama.