
Em 2020, o Março da Mulher foi tomado pelo pânico e pelas incertezas de uma crise sanitária, de proporções globais, com a chegada ao Brasil de uma pandemia de coronavírus. Com efeito, os números mostram que a crise do Covid-19 tem raça e gênero no país das desigualdades. E é sobre a população negra, sobretudo mulheres, que recai a maior ameaça de contrair a doença.
A tradicional agenda de lutas e conquistas do mês alusivo à emancipação feminina, com as bandeiras da igualdade, contra o machismo e a violência que ele produz, foi arrefecida. Lidar com o vírus e sua letalidade tornou-se a mais importante estratégia de vida em comum.
Junto com fatores socioeconômicos, os índices de doenças como hipertensão e diabetes, mais elevados entre os negros, favorecem uma evolução mais grave da doença.
A necessidade de frear a disseminação do vírus e estabilizar a curva contágio fez autoridades sanitárias, como a OMS, recomendarem uma série de medidas preventivas, entre elas, a mais radical: o isolamento social.
Em contagem revisada pelo Painel Coronavírus, do Ministério da Saúde, o número de infectados no país já passa de 11 mil e o volume de mortos é de 486.
O rápido avanço da doença contrasta com a resposta letárgica do Governo Federal, escancarando as desigualdades já vividas por milhões de brasileiros.
A doença promete agravar o cenário de assimetrias sociais e econômicas, com o vírus em marcha, rumo às camadas inferiores da pirâmide social. Uma estrutura formada por pretos, pobres e sustentada pelas mulheres negras, base dessa pirâmide.
É lá, nas periferias, onde os equipamentos públicos custam a chegar – quando chegam – que vive a população com menor renda, em sua maioria mulheres negras.
A crise sanitária ameaça a vida de todos, e mais assustadoramente a existência daquela parcela da população que, sem saneamento básico, enfrenta a precariedade na coleta de lixo e abastecimento de água.
São as famílias de mulheres negras e mães solos as mais afetadas pela falta de saneamento básico, apontam dados do IBGE compilados pelo G1. Como registra o portal, mais de 40% das negras não têm acesso a esgoto.

E na corrida contra o tempo para vencer o Covid-19, o cenário conturbado de medidas emergenciais, imprecisões científicas, isolamento e incertezas sobre um futuro próximo, a escolha sobre quem vive ou morre chega eivada pela discriminação de classe, cor e gênero.
Os números frios de institutos de pesquisa e monitoramento socioeconômicos, comprovam essa tendência.
A cor da dor

Representando 54% da população brasileira, pessoas negras podem ser as mais afetadas pelo vírus e o contexto de isolamento, encolhimento da renda e aumento da violência doméstica.
E mesmo sendo maioria no Brasil, negras e negros são os que mais sofrem com a pobreza, a miséria, a violência e o descaso do governo.

Fonte: Análise produzida a partir dos microdados dos registros policiais e das Se- cretarias estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social, elaborada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Atravessadas pelo racismo estrutural, são as mulheres negras a maiores vítimas de violência doméstica e feminicídios.
Segundo o 13o. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 1.206 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2018, dessas 61% eram mulheres negra.

Mais números
Além da cor, a dor tem e gênero. Muitas vezes interrompidas pelo racismo institucional, as mulheres negras são as principais vítimas da violência obstétrica e abuso sexual, como informa a Agência Senado, com base no Mapa da Violência 2019.
No mercado de trabalho, são elas as que têm os menores salários e subempregos. Elas recebem 70% a mais do que negras, segundo dados do IPEA.
Para se ter uma ideia do recorte de gênero, em 2018 mulheres negras receberam, em média, menos da metade dos salários pagos a homens brancos (44,4%).
Eles ocupam o topo da escala de remuneração no país, seguidos das mulheres brancas. Os dados são da pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça do IBGE.
Ainda no campo das vulnerabilidades sociais, são das mulheres negras os filhos mortos pelo Estado, em sua política de Segurança Pública que adota o extermínio como principal “estratégia”.
Nos presídios brasileiros, das 42 mil mulheres presas 70% são mulheres negras na faixa de 18 a 30 anos.
É possível que estejamos vivendo um ponto de mutação com a pandemia que irá alterar o olhar sobre a questão racial?
A pergunta ecoa nas mentes e a realidade de não igualdade no acesso a direitos e trato sociais, econômicos e trabalhistas, colocam as mulheres negras no centro do debate sobre desigualdades.
Maiores vítimas, elas também despontam como protagonistas, rompendo grilhões e movimentando as estruturas sociais.
O preço é alto, e na maioria das vezes, à custa da saúde mental, perda de afetos e até a própria vida. Marielle presente!
“Eu não sou uma mulher?”
No artigo Feminismo Negro Para Um Novo Marco Civilizatório, Djamila Ribeiro, discute a importância do feminismo negro para o debate político atual. Assim, a interseccionalidade reafirma em seu potencial de mitigar as desigualdades, aprofundadas pelos efeitos do vírus.
Indistintamente, ela reflete sobre “como a ausência de um olhar étnico-racial no movimento feminista tem invisibilizado as mulheres negras e suas lutas, obstaculizando o caminho de se tornarem sujeitos políticos”.
A interseccionalidade evocada pelo feminismo negro de Sojourner Truth inquieta. De outra maneira, a contundência dos textos de Kimberlé Williams e Angela Davis, denuncia.
Há 169 anos, Sojourner Truth provou que ter voz é diferente de ser ouvida. Essa mulher negra inquietou uma plateia, majoritariamente feminina e branca, em Ohio, nos Estados Unidos, ao perguntar a todos se ela não era uma mulher.
A pergunta “Eu não sou uma mulher?”, normalidade em era aceito que uma mulher negra não ser tratada com respeito e de forma cortês, diferente do que ocorria com as mulheres brancas. O discurso ocorreu durante a Convenção pelos Direitos das Mulheres, em 29 de maio de 1851, na cidade de Akron, Ohio.

E que mulher negra, em algum momento de sua trajetória, não se indagou como Sojourner ?
Essa escrava alforriada – abolicionista e defensora dos direitos das mulheres Truth, já olhava a sociedade pelas lentes da interseccionalidade de forma articulada, sem hierarquizar opressões.
O feminismo negro expresso na atuação da abolicionista, entendia lutas como a da reforma das prisões e contra a pena de morte como importantes para o conjunto da sociedade.
“Ser ouvida aqui de baixo não é fácil”
O desabafo, “Ser ouvida aqui de baixo não é fácil”, é de Lívia Teodoro. Em entrevista ao Voz Ativa, a feminista negra, assim como Soujourne Truth, dá voz e relevo ao silenciamento e opressões vividos por mulheres negras.
Traçando um paralelo histórico, a fala icônica, e incômoda, de Truth ocorreu 59 anos antes de um outra conferência feminina, a Segunda Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, em 1910.
Também lá, a pautas das feministas negras também não compuseram os eixos de debates da conferência. Foi na conferência de 1910 que criaram o Dia Internacional da Mulher.
Ademais, seja das favelas ou da academia, e dos poucos espaços de decisão ocupados com muita luta, a mulheres negras resistem, agora mais ainda ao avanço do vírus.
#CoronaNasPeriferias
Na coluna Ecoa Por Um Mundo Melhor , do UOL, a colunista Mariana Belmont, sugere o consumo e compartilhamento de conteúdos produzidos pelos coletivos de comunicação, que se revesam na cobertura do Covid-19 nas favelas.
Confira a lista: