#NãoMexaNasMinhasRoupas é um chamado da moda para uma questão geopolítica complexa que interdita a expressão da identidade no vestir das mulheres do Afeganistão. Em protesto contra as novas regras rígidas anunciadas pelo Talibã para estudantes mulheres, afegãs deram início a uma campanha online.
Usando hashtags como #DoNotTouchMyClothes e #AfghanistanCulture (#CulturaDoAfeganistão), muitas compartilharam imagens de seus vestidos tradicionais coloridos.
A antropóloga, livre docente e pesquisadora de Psicologia Social na Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto, Francirosy Campos Barbosa, chamou a atenção para o uso das roupas femininas como ponto central de uma situação muito mais complexa. A crise afegã vai além dos nossos corpos e roupas. “Não é sobre as roupas das mulheres, porque se as afegãs quisessem retirar as burcas teriam feito quando os EUA ocupou o Afeganistão”, aponta.
“A questão é muito mais profunda, é a opressão, o autoritarismo, a violação dos direitos humanos. Se as mulheres optam em usar a burca é problema delas e não meu ou seu. Parem de achar que vão salvar mulheres muçulmanas. Parem de querer ocidentalizar a sua maneira as mulheres.”
Francirosy Campos Barbosa
Francirose, pós-doutora pela Universidade de Oxford em Teologia Islâmica, ressalta que no Brasil, por exemplo, “vivemos um governo fascista, autoritário, violento e, nem por isso, precisamos usar burca.”
No ocidente, o corpo feminino é controlado e vigiado pelo patriarcado capitalista, embora com técnicas diferentes do Talibã. Uma delas é o estímulo incessante ao desejo de buscar a beleza inalcançável.
Vários setores econômicos se movimentam a partir desse impulso pelo belo, sobretudo de mulheres. Dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica mostram que mais de 1,5 milhão procedimentos estéticos são feitos no Brasil todos os anos.
A indústria de higiene pessoal, perfumaria e cosméticos, por exemplo, é o quarto maior mercado consumidor do mundo. No Brasil, movimentou US$ 23.738 bilhões em 2020, de acordo com dados da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC). O país é o terceiro mercado no ranking global de nações que mais lançam produtos anualmente, atrás do líder Estados Unidos e da China em segundo lugar. Até durante a pandemia o setor cresceu: 2,2% em 2020.
Por aqui, nós mulheres também temos código de vestimenta, embora não seja imposto como a experiência afegã, ainda somos catalogadas e pulverizadas por classificações muitas vezes pejorativas: ‘piriguete’, ‘pirua’, ‘patricinha’, ‘careta’, ‘alternativa’, ‘feminazi’… O sistema patriarcal faz da escolha de uma roupa um ato político quando, por exemplo, a peça que uma mulher veste é justificativa para várias formas de violência que ela sofre.
No Afeganistão do Talibã, a questão feminina ganha contornos mais dramáticos ainda graças ao fundamentalismo religioso que poda o direito das mulheres se expressarem pelas roupas. Se você buscar “roupas tradicionais afegãs” no Google, verá imagens de vestidos tradicionais coloridos.
Cada um dos tipos de vestido afegão é único, com bordados feitos à mão, pequenos espelhos colocados cuidadosamente perto do peito, comprimentos longos, que ganham movimento durante a Attan, dança nacional afegã. Algumas mulheres usam chapéus bordados, outras usam arco de cabelo, dependendo da região do Afeganistão de onde vêm.
Uma versão reduzida de vestidos semelhantes foi usada todos os dias por mulheres que iam à universidade ou ao seu local de trabalho nos últimos 20 anos, período de ocupação militar liderada pelos Estados Unidos. Às vezes, as calças eram substituídas por jeans e os lenços eram colocados na cabeça em vez de aparecerem nos ombros.
As fotos de mulheres em abayas pretas compridas e totalmente veladas, cobrindo o rosto e as mãos, e se reunindo em Cabul no fim de semana para apoiar a “ordem do Talibã” por um novo código de vestimenta se mostraram um contraste impressionante.
Há registros de participantes de um comício pró-Talibã na capital dizendo que mulheres afegãs usando maquiagem e roupas modernas “não representam a mulher muçulmana afegã” e que “não querem os direitos das mulheres que são estrangeiras e em desacordo com a Sharia”, referência à versão estrita da lei islâmica apoiada pelo Talibã.
Mulheres afegãs ao redor do mundo responderam rapidamente ao protesto pró-Talibã. Juntando-se a uma campanha de mídia social iniciada por Bahar Jalali, uma ex-professora de história da Universidade Americana no Afeganistão, elas usaram hashtags como #DoNotTouchMyClothes e #AfghanistanCulture para resgatar e divulgar suas roupas tradicionais.
Como alguém que viveu e trabalhou no Afeganistão nos últimos 20 anos, Ahmad diz: “As mulheres tinham uma escolha. Minha mãe usava um véu longo e grande e algumas mulheres optavam por usar outros menores. Os códigos de vestimenta não eram impostos às mulheres.”
Outra mulher que participou da campanha no Twitter é Malali Bashir, uma jornalista afegã radicada na República Tcheca. Ela também retrata mulheres afegãs em seus vestidos tradicionais para “mostrar ao mundo a beleza de nossa cultura”.
Ela diz que, na aldeia em que cresceu, “uma burca, preta ou azul, nunca foi uma norma e as mulheres usavam seus vestidos culturais afegãos. As mulheres mais velhas usavam uma cobertura preta na cabeça e as mais jovens usavam xales coloridos. As mulheres cumprimentavam os homens apertando as mãos”.
“Há uma pressão recente e crescente sobre as mulheres afegãs para mudarem suas roupas culturais e se cobrirem totalmente ou desaparecerem da vista do público”. Malali Bashir
“Publiquei minha foto e compartilhei de novo um de meus retratos em que mulheres afegãs estão usando nossos vestidos culturais e dançando pela nação a dança do Afeganistão chamada ‘Attan’.”
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Com informações do G1 e da BBC