Assim como o caráter das revoluções é definido nos processos de sua implantação, os governos democráticos são definidos pelos processos eleitorais em que se realizam.
A ampla frente democrática que assegurou a vitória eleitoral da chapa Lula-Alckmin sobre Bolsonaro no primeiro e no segundo turno das últimas eleições, deixa claro que teremos um governo de centro nos próximos quatro anos. Contudo, a espinha dorsal da vitória de Lula foi a esquerda que enfrentou a mais corrupta, violenta e disputada eleição presidencial.
Dentro dessa realidade é que a esquerda brasileira terá que se movimentar com o objetivo de tornar este governo o mais avançado possível nos terrenos social, econômico e politico.
Já existe um grau de consenso razoável em torno das prioridades sociais nas áreas de educação, saúde, segurança publica e do meio ambiente. Existe, também, a proposta de se construir um consenso quanto aos direitos trabalhistas e previdenciários, embora com um pouco mais dificuldade.
A economia talvez comporte um consenso quanto à necessidade modernizar os modelos produtivos com uma transição para a economia digital e criativa na indústria, no comercio, na agricultura e atividade financeira. Mas haverá disputa natural quanto à distribuição de renda. pois existem setores da economia cujos lucros não dependem de uma distribuição mais justa e da ampliação do poder de compra da população.
Na politica é que as cartas vão se embaralhar mais. Alguns consensos, concessões inevitáveis. Interesses de todo tipo. Controvérsias de difícil conciliação. A primeira delas é o RP 9, o chamado Orçamento Secreto, um dos maiores e mais eficientes instrumentos de corrupção. Corrupção eleitoral e de erosão da democracia representativa. Depois vem a Reforma Tributária, consensual quanto à necessidade mas que encerra grandes contradições nos planos regional e econômico no que se refere à distribuição de renda.
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O governo de Lula e Alckmin vai administrar as possibilidades e “torear” os impasses e as dificuldades. Vai ter que atender algumas reinvindicações da esquerda e ceder outras para a direita liberal e democrática.
A ampla frente democrática terá que ser mantida, dentro e fora do governo, para enfrentar e impedir o crescimento da ultra-direita fascista que conquistou um grande apoio eleitoral, apoios sociais significativos e militância aguerrida e violenta.
Porem a manutenção da frente democrática não deve significar a diluição dos partidos nela. Os partidos de centro e direita democrática não terão dificuldades para isso, pois suas postulações são quase todas referentes à manutenção do status-quo.
Os partidos que pela seus programas, sua composição e sua prática, situam-se do centro para a esquerda deveriam aprender com as lições do passado e absorver as experiências mais recentes, inclusive as experiências da ultra direita.
As lições do passado referem-se aos primeiros governos de Lula quando praticamente abandonamos a mobilização popular e nos dedicamos quase que exclusivamente aos governos. Muito dos nossos melhores quadros dedicaram-se a funções governamentais. Essas funções exigem um certo pragmatismo, como é próprio do governos, que deixam para um segundo plano os valores políticos, ideológicos e morais que inspiram a militância revolucionária e transformadora. Em grande medida trocou-se as organizações sociais e populares pela disputa e ocupação de espaços de governo. Trocou-se, também, as pautas mais estruturais, transformadoras e mesmo as utopias, pelas realizações governamentais sempre mais limitadas e pela disputa fisiológica de cargos e funções.
Por outro lado já aprendemos (principalmente em relação a 2018) mas temos muito a aprender com a ultra direita bolsonarista e sua nova militância física e virtual. Em primeiro lugar que essa militância baseia-se em valores. Falsos e verdadeiros, deformados ou manipulados mas… valores. Falsos ou verdadeiros valores morais, filosóficos e políticos.
“Deus , pátria , família e liberdade” ainda que utilizados pelo fascismo, são valores “positivos” colocados a serviço dos ódios raciais, misóginos, homofóbicos. Seu deus é intolerante, persecutório, ameaçador e serve apenas a uma parte da humanidade. Sua pátria é destituída de conceitos como soberania nacional e preservação ambiental reduzindo-se às cores verde e amarelo. Sua família é falsificada nas imagens e conceitos simplistas e standardizados. E sua liberdade é apenas a liberdade do capital .
Mas esses valores são utilizados cotidianamente, transformados e alimentados pelas fake news. Dão cobertura à corrupção promovida pelo seu governo. Alimentam suas milícias digitais. Didatizam sua peças de publicidade politica
Enquanto isso os partidos de esquerda, talvez para evitar a cafonice, talvez porque tenham se preocupado apenas com seus governos, tornaram-se excessivamente pragmáticos, excessivamente corporativos, excessivamente identitários. É preciso retomar os conceitos de Nação, de soberania nacional, de Brasil como potencia criativa e sustentável como, por exemplo, define o programa do meu partido o PSB.
Na campanha eleitoral retomamos alguns valores morais e políticos como a defesa da vida, do amor e da democracia. E Lula funcionou como um extraordinário vocalizador desses valores. Falando numa linguagem popular , exemplificando com suas realizações passadas e apontando um pouco para o futuro, infligiu uma derrota histórica à ultra-direita e a Bolsonaro, primeiro presidente a não ser reeleito.
Lula conduzirá com Alckmin um governo democrático de centro.
Mas os partidos de esquerda precisam estar a altura dessa vitória e passarem a cumprir o seu duplo papel de participar do governo mas também de terem uma existência própria fora do governo.
Mobilizando a sociedade para apoiar o governo contra uma ultra-direita forte e violenta, mas também para tencionar o governo positivamente em direção ao progresso social econômico.
Para isso os partidos precisam existir fora do governo. Defender os seus programas e suas utopias independente de sua plena execução pelos governos dos quais participam.
Precisarão retomar seus valores históricos em dimensões nacionais. Mas também universais como Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Valores morais como a solidariedade, o companheirismo, serão cada dia mais necessários para enfrentar a direita fascista.
Lembrarmo-nos que defendemos os meios pacíficos e políticos para resolver a divergências mas reconhecemos , objetivamente, que numa sociedade de classes a luta é contínua e que nessa luta estaremos sempre ao lado do trabalho e dos trabalhadores.
Compreender bem aquilo que as nossas campanhas eleitorais já sabem sobre a sociedade em rede que vivemos.
Compreendermos , enfim, a importante lição do últimos anos que os partidos não são as únicas formas de militância, mas são fundamentais para garantir que todas as outras formas existam .
Por Domingos Leonelli, ex-deputado federal e coordenador do site Socialismo Criativo