A desindustrialização brasileira chegou à preocupação da grande imprensa. A pandemia do coronavírus e todo o imbróglio a respeito da compra das vacinas e, mais especificamente, do chamado IFA (ingrediente farmacêutico ativo) acabou expondo o desastre que se abateu sobre a indústria brasileira nas últimas décadas. O Globo, Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo, além dos telejornais, destacaram, algumas semanas atrás, a triste queda da capacidade brasileira para atender seu próprio mercado farmacêutico. Se na década de 1980 produzíamos 55% dos insumos necessários ao consumo de fármacos no país, hoje, esse número é de irrisórios 5%.
As nossas dificuldades no setor industrial não são de hoje, mas são resultado de um processo combinado de crises sucessivas, iniciadas na nossa primeira “década perdida”, a de 1980, agravado pela abertura comercial irrefletida dos anos 1990 e a ausência de projeto nacional de desenvolvimento nas décadas que se seguiram. E isso não foi sem aviso. Avessos à ideia de que restrição fiscal, combate à inflação – algo que era absolutamente necessário -, privatizações e liberalização comercial pura e simples automaticamente levariam o Brasil ao desenvolvimento, economistas heterodoxos vêm alertando governantes para a enrascada na qual insistimos em nos meter desde a década de 1990. Na década que se seguiu, a dos anos 2000, alguns economistas começaram a falar sob o rótulo de “novo-desenvolvimentistas”, fazendo referência ao movimento e à ideologia econômica que tirou o Brasil de um atraso ainda maior no século XX, e analisando profundamente as causas que nos levariam ao fracasso de hoje. Vale muito a pena para os setores progressistas prestar atenção nesses economistas, pois eles têm projeto e solução.
De um ponto de vista mais geral e menos técnico, pode-se dizer que a solução é ter projeto nacional. Não tivemos projeto de desenvolvimento nas últimas quatro décadas. Tivemos sim, durante alguns anos em que a esquerda esteve no poder, um projeto social, o qual comprou a briga pela redução da desigualdade e pela redução da pobreza. Há controvérsia sobre os resultados. Mas esse projeto não foi combinado com esforço de desenvolvimento econômico, de geração de tecnologia, de investimentos bem direcionados em ciência e melhoria estrutural da economia brasileira. De certa maneira, durante a execução do importantíssimo projeto social, o país parece ter continuado na trilha de que a economia acaba se desenvolvendo por si mesma. Mesmo naquele tempo, continuamos sem plano de desenvolvimento econômico e nos fiamos em boa medida nas crenças liberais.
Hoje, na minha opinião, estamos sem opção. O resultado da ausência de projeto de desenvolvimento nacional está aí, nas sucessivas décadas perdidas e escancarado pela nossa incapacidade de produzir uma solução para a pandemia do coronavírus. Note que três das vacinas vêm exatamente de países do BRICS, a Índia, a China e a Rússia. Mas o Brasil não conseguiu chegar lá. Para todos que consideram isso um problema a única opção é tomar de volta o timão em nossas mãos e enxergar de uma vez por todas que o pensamento mágico de que a economia se desenvolve apenas com um governo fiscalmente responsável e a liberalização da economia não funciona.
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Precisamos, então, investir na mudança estrutural de nossa economia. Temos que parar de caminhar a passos largos para sermos apenas exportadores e produtores de bens primários, como éramos há cerca de 100 anos atrás. Devemos voltar a ter um projeto de indústria nacional e a investir na produção de bens que os economistas chamam de bens complexos. Esses bens são aqueles que não são facilmente produzidos ao redor do mundo e que poucos países têm a capacidade de produzir: computadores, eletrônicos, medicamentos e equipamentos de saúde, máquinas de alta complexidade e aparelhos de mecânica fina, veículos, navios, aviões, produtos com design diferenciado, entre vários outros. As commodities em que o Brasil vem se especializando não são bens complexos. Segundo estudos que já são publicados há algum tempo por pesquisadores como o professor de Harvard Ricardo Hausmann, há íntima relação entre o desenvolvimento e as economias que produzem esse tipo de bem. O Brasil, apesar das adversidades, tem exemplos de indústrias de sucesso nesse tipo de bem complexo, como na produção dos aviões da Embraer e nos equipamentos elétricos da empresa catarinense WEG. Esse é o caminho da reindustrialização brasileira. Isso é o que fez a China nas últimas décadas, ao contrário do Brasil.
Contudo, agora, essa industrialização não pode mais ser a industrialização levada a cabo no país no século XX. A variável ambiental se impõe, nesse momento histórico, como algo que não é possível deixar de lado. Dentro da necessidade de se mudar a estrutura da economia brasileira, é preciso que o projeto seja um projeto ambientalmente sustentável e responsável. Ainda mais levando em consideração que o Brasil é o país que detém uma das maiores riquezas naturais do planeta, a Amazônia. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (a Cepal), a mesma instituição que lá nos anos 1950 deu início ao desenvolvimentismo do século XX, vem defendendo uma ideia muito importante e que combina a sustentabilidade com a necessidade de mudança estrutural na economia brasileira.
A ideia é a do “big push ambiental”, um projeto que atualiza para as necessidades ambientais do século XXI o pensamento de importantes economistas desenvolvimentistas do século anterior. A ideia tem o nome de “big push” porque um projeto de desenvolvimento com grandes impactos não pode ser gradual, baseado em pequenos investimentos em algumas áreas da economia. Como afirmava o grande estudioso do desenvolvimento, o economista Paul Rosenstein-Rodan, para uma mudança estrutural da economia é preciso um impulso de grandes investimentos articulados entre iniciativa privada, poder público, agentes estrangeiros e organizações multilaterais. A analogia que pode ser usada é a da decolagem de um avião: ele somente decola depois de atingida uma velocidade mínima. Não adianta, para um avião decolar, percorrer uma maior distância a uma velocidade menor do que a mínima, ele só decola quando uma velocidade específica é atingida.
Contudo, se grandes investimentos são necessários, as restrições ambientais impõem escolhas diferentes daquelas feitas no século XX. Os investimentos precisam ser em atividades com baixo impacto ambiental, que aproveitem a riqueza natural brasileira de forma sustentável. Tecnologias de energia renovável e eficiente, economia circular, práticas de integração do setor produtivo com o ambiente natural típico do nosso país, eliminação do descarte de resíduos e reutilização são alguns dos caminhos a trilhar com os investimentos de um big push. Aliás, estudos já vêm demonstrando que uma economia com estrutura mais complexa, que produza bens mais complexos, tem menor impacto ambiental. Estudo recente do professor de economia da UFMG João Prates Romero, em conjunto com a economista da Cepal Camila Gramkow, mostra algo exatamente nesse sentido. Economias mais complexas são relativamente menos poluentes.
Mas essa solução tem ainda mais um componente que ajuda a fechar o projeto de que precisamos: a economia criativa. Economia criativa é o setor da economia que engloba as atividades cujo insumo principal é a criação advinda da inteligência humana. São setores como o das artes, do design, da pesquisa e da ciência, do patrimônio material e imaterial, do audiovisual, da publicidade e do marketing e das tecnologias de informação e de comunicações. O investimento em setores da economia criativa cria empregos de maior qualidade, com maior capital humano incorporado, que produzem produtos de maior valor agregado, e mais complexos. Para a complexificação da estrutura da economia e, em especial para uma alteração na direção de tecnologias sustentáveis, a economia criativa, com ciência, tecnologia, tecnologia da informação e de comunicações se torna uma variável essencial. Como diz uma das especialistas no assunto, a economista paranaense Gina Paladino, ao analisar até mesmo o desenvolvimento local: “As cidades mais competitivas do mundo estão cada vez mais dominadas por inovações que substituem recursos naturais não renováveis pelos talentos do ser humano como insumo básico das suas economias.”
É levando em consideração essas modernas ideias, da complexidade da estrutura produtiva, da necessidade do desenvolvimento sustentável através de um big push e da ênfase na economia criativa como vetor de uma nova economia brasileira que fiquei muito bem impressionado ao ler o livro três da Autorreforma do PSB. Depois de décadas de desconstrução da economia nacional, apesar de termos que reconhecer avanços na área social e das instituições, é preciso colocar para a sociedade brasileira um projeto de nação, um horizonte, um lugar no qual queremos chegar. O PSB certamente está fazendo isso afinado com o que há de melhor, mais sensato e moderno a respeito do desenvolvimento econômico brasileiro. Façamos votos para que esse projeto se concretize em futuro próximo.
*Marco Antonio Ribas Cavalieri é doutor em economia pelo Cedeplar/UFMG e pós-doutor pela Universidade de Chicago. Professor do Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Econômico, professor do programa de pós-graduação em Ciência Política e Pró Reitor de Administração da UFPR.