
Como reflexo do racismo estrutural presente no Brasil e no mundo, a hostilidade com negros se dá em todos os setores da sociedade, e não poderia ser diferente na área de turismo. O racismo estrutural também se expande para experiências vividas nas plataformas de hospedagem, por exemplo, como na história de Carlos Humberto da Silva.
Um hóspede branco não quis se hospedar na casa de Carlos Humberto após ver que ele, o anfitrião, é negro e possui reservas menores do que a de outros amigos brancos, ainda que ofereça um apartamento bem melhor.
O caso, que envolve o Airbnb, é conhecido pela comunidade negra e estimulou a criação da Diáspora Black, plataforma de hospedagem criada a partir de uma resposta a um mercado excludente de um potente nicho de consumidores negros.
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Carlos Humberto é sócio fundador da Diáspora Black, empresa que vende acomodações, experiências, viagens e cursos de pessoas negras, e costuma dizer que já conhecia o racismo de perto, mas que quando ele migrou da rua para a sua casa “foi muito doloroso”.
O episódio está longe de ser isolado, pois há diversos relatos de pessoas negras que não conseguem hospedes para reservar suas casas e nem conseguem reservar imoveis no Airbnb. Exemplo disso é o caso que aconteceu com o produtor audiovisual Jonas Silva, que reservou uma casa no Airbnb para passar um fim de semana com seus amigos. No entanto, a tentativa da administradora do local de cancelar a reserva de última hora — alegando problemas na documentação dos dois únicos negros do grupo — atrapalhou o que deveria ser um momento de reencontro. Na época, ele considerou que houve racismo.
Administradora tenta cancelar na véspera
A história que Jonas compartilhou em seu Twitter não é a única do tipo — também na rede social, outro cliente negro contou que sua reserva foi cancelada alegando problemas no imóvel, mas o proprietário continuou negociando locações para outros hóspedes.
Jonas reservou um sobrado no Morumbi, em São Paulo (SP), para o fim de semana do dia 8 de outubro. O plano era encontrar quatro amigos de longa data que não se viam desde antes da pandemia. Na noite da véspera, a administradora do local entrou em contato com ele por WhatsApp e pediu fotos dos documentos.
Ao verificar que era a primeira vez do cliente na plataforma, ela questionou qual seria a intenção da locação e reforçou as regras: festas e barulho eram proibidos, assim como fumar no local. O produtor disse que já havia lido essas condições no site do Airbnb e concordado com tudo — o plano era só mesmo passar um fim de semana com os amigos.
A administradora, então, pediu fotos de outros documentos dos hóspedes. Por fim, informou que ele precisaria cancelar a reserva porque, ao consultar todos os RGs no site da Polícia Civil, haviam sido encontradas restrições ao dele e ao de um amigo, ambos negros. Ao verificar essa informação, porém, Jonas descobriu que o documento de seu amigo não possuía restrições, mas sim o de outra integrante do grupo, branca.
Após ser questionada quanto a essa diferença nas verificações, a anfitriã voltou atrás e disse não ter checado os documentos de todos do grupo no site. Ela ponderou que a checagem do site não estava fazendo sentido, por causa das inconsistências, e prosseguiu com a reserva. Jonas também decidiu não cancelar, porque seria difícil organizar novamente o encontro.
O produtor contou em uma matéria do site Tecnoblog que, enquanto a administradora fazia questionamentos e pedia mais documentos, seus amigos já esperavam que haveria alguma alegação contra os únicos negros do grupo. Ele considerou que houve racismo por parte da anfitriã.
A consulta ao RG não informa exatamente qual é o problema quando há restrições. A página da Polícia Civil diz apenas que os motivos mais comuns são falecimento, desaparecimento ou registro de um boletim de ocorrência de perda, furto ou roubo do documento. Jonas diz que nenhum dos dois documentos se encaixavam nesses casos.
Na ocasião, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, que explicou que documentos emitidos em outros estados ou com mais de uma via solicitada também recebem são marcados como restritos pelo sistema.
Quando a consulta diz que há restrições, a recomendação da Polícia Civil é procurar o Poupatempo (serviço paulista que reúne diversas instâncias burocráticas) para emitir uma nova via.
Jonas contou seu caso no Twitter em 11 de outubro de 2021, e seu relato viralizou na rede. Em seu tweet, ele pergunta se outras pessoas já haviam passado por isso. Em conversa com o Tecnoblog, ele diz que acreditava que talvez pudesse ser um procedimento padrão. Nas respostas à publicação, outros usuários disseram que suas reservas não tiveram tantas exigências.
Uma semana antes, outro usuário negro compartilhou na mesma rede social que o anfitrião havia recusado uma reserva sua, que já havia sido paga, alegando problemas no imóvel. Ao tentar alugar o mesmo local com um perfil de pessoa branca, a negociação correu normalmente. Vale lembrar que a foto do hóspede só é compartilhada depois a reserva ser feita, uma das políticas do Airbnb para evitar discriminação. A suspeita, portanto, vem do fato de o proprietário se dispor a alugar para outra pessoa.
Relatos de discriminação têm até hashtag
A rejeição à população negra neste tipo de plataforma não é um fenômeno apenas brasileiro, pois não é a primeira vez que hosts da plataforma de aluguel de quartos, apartamentos e casas são acusados de racismo.
Conforme uma reportagem da BBC de 2015, um estudo da Universidade de Harvard concluiu que hóspedes com nomes tipicamente afro-estadunidenses têm 16% menos chances de serem aceitos na plataforma de hospedagem do que candidatos com sobrenomes identificados como de pessoas brancas. No entanto, o Airbnb, que além das hospedagens oferece experiências turísticas, iniciou ações para aumentar a inclusão de pessoas negras na rede. Em Nova York, por exemplo, há opção de fazer compras no Harlem com uma antropóloga negra.
Relatos de discriminação no Airbnb ganharam até uma hashtag própria, #AirbnbWhileBlack, em que usuários compartilham suas histórias desse tipo.
Advogado recomenda procurar a polícia
O advogado Adriano Mendes recomenda que pessoas que passem por situações em que se sentem vítimas de discriminação procurem a polícia e registrem um boletim de ocorrência. Ele enfatiza: racismo é crime no Brasil.
Como o Airbnb atua apenas como intermediário entre proprietários e interessados em alugar, ele se isenta de responsabilidade legal nesses casos. Mesmo assim, um B.O. pode ajudar a plataforma a tomar medidas cabíveis contra quem pratica discriminação.
Mendes também considera que é recomendável entrar com uma ação penal em casos desse tipo, para que os acusados prestem explicações e o caso seja investigado. Caso a Justiça considere que houve mesmo um crime, eles podem ser condenados.
Posicionamento do Airbnb
Ao tomar conhecimento do caso, o Airbnb explicou que mantém uma rigorosa política de não discriminação e que o descumprimento das regras pode resultar na suspensão da plataforma e até responsabilização legal.
Em 2016, o Airbnb implementou a “Política de Não Discriminação“. Desde, então, mais de 1,3 milhão de pessoas se recusaram a concordar com o termo da empresa e, por isso, tiveram o uso negado ou suas contas canceladas.
Em entrevista ao Axios, Brian Chesky, CEO da empresa, disse que as mudanças que vem sendo feitas desde 2016 vieram após a companhia tomar ciência da hashtag #AirbnbWhileBlack e do experimento feito em Harvard.
Com informações da BBC News , Tecnoblog e Catraca Livre