A palavra revolução é uma das mais ricas em significados e derivações. Em todas as línguas é um substantivo feminino que se refere ao movimento das estrelas e à relação de tempo e espaço. No seu conceito original definia o tempo gasto por um corpo celeste, ao redor do outro, num movimento circular ou elíptico, que volta a sua posição original. Ao contrário, portanto, do sentido político, social e econômico, quando os movimentos revolucionários constituem-se em mudanças sempre em direção ao futuro.
O significado da palavra revolução na maioria dos dicionários alude ao momento insurrecional, as sublevações, revoltas, transformações violentas e abruptas do Estado. Falam mais do ato da tomada do poder numa revolução, sempre muito breve se comparado ao processo revolucionário, muito mais longo.
Alguns poucos dicionários, mais corretamente, definem as revoluções como movimentos de transformações profundas e radicais na estrutura da sociedade. Contudo, essas mudanças profundas e radicais dão-se após muitos e longos anos de processo revolucionário. Isso é facilmente comprovado pelo exame histórico das grandes revoluções mundiais. Tanto as revoluções classificadas como burguesas na Inglaterra, na França e na América do Norte, como as consideradas socialistas na Rússia e na China, precisaram de longos anos e até de séculos, para realizar e consolidar as transformações estruturais a que se propunham. E nenhuma delas foi totalmente burguesa ou completamente socialista.
Foram marcadas por avanços e recuos políticos, econômicos e sociais. Basta lembrar que Napoleão Bonaparte sagrou-se imperador da França, depois da Revolução Francesa ter guilhotinado a maioria dos membros da nobreza. Stálin, mesmo sob regime socialista, fez-se uma espécie de czar russo despótico e cruel. E a grande revolução chinesa reincorporou elementos do capitalismo ao socialismo, criando o “socialismo de mercado”. Por incrível que pareça, a mais linear no sentido de avanços contínuos, principalmente econômicos, foi a revolução americana.
Outra característica das grandes revoluções, é que elas têm um caráter genuinamente nacional, ainda que pretendam se constituir em modelos internacionais, replicáveis. Podem, sim, inspirar movimentos revolucionários como ocorreu com as revoluções francesa e russa, mas nunca reproduzidas. E as tentativas nesse sentido foram sempre desastrosas.
Já o mais famoso Dicionário da Política organizado pelo pensador italiano Norberto Bobbio, dedica nada menos do que 10 páginas ao verbete revolução. E mais 3 páginas ao reformismo revolucionário, tratando praticamente do mesmo assunto.
Mas é do historiador brasileiro Caio Prado Júnior, no seu Livro a ‘’Revolução Brasileira’’, a definição que tomamos como base para o presente texto: “ Revolução, em seu sentido real e profundo, significa o processo histórico assinalado por reformas e modificações econômicas, sociais e políticas, que concentradas num período histórico relativamente curto, vão dar em transformações estruturais da sociedade”.
Sobre a natureza da revolução brasileira, se socialista ou democrático-burguesa, Caio Prado alerta sobre a inutilidade de assentá-la em cima de “convicções predeterminadas de ordem doutrinaria e apriorística. ”
E meio século depois da publicação da “Revolução Brasileira”, Caio Prado parece muito atual quando afirma: “Trata-se de definir uma teoria revolucionária que seja expressão da conjuntura econômica, social e política do momento, e em que se revelam as questões pendentes e as soluções possíveis para as quais estas questões apontam. (…) É de uma teoria dessas que necessita a revolução brasileira e não de especulações abstratas acerca de “natureza” dessa revolução…” Segundo ele a natureza da Revolução se define quando da aplicação de medidas concretas, “depois de fixadas as reformas e transformações cabíveis que se incorporam no curso da própria Revolução”
Ainda em socorro do caráter especificamente nacional de cada revolução, realçada por Caio Prado na “Revolução Brasileira” vale a pena recorrer ao relatório do 19º Congresso Nacional do Partido Comunista da China em outubro de 2017. Nele o presidente Xi Jinping referiu-se várias vezes ao “Socialismo com características chinesas e o sonho chinês penetrando profundamente no coração das pessoas”.
E ainda, referindo-se aos progressos obtidos na construção ideológica e cultural, Xi Jinping diz que “ fortaleceu-se na direção do Partido o conceito de valores-chave do socialismo e a excelente cultura tradicional chinesa que se difundiram amplamente em atividades de massa fomentadores de civilização espiritual.”
Assim, uma teoria revolucionária para o Brasil do século XXI precisará responder pelas novas realidades das revoluções tecnológicas, da globalização e da era conhecimento que tem na economia criativa um dos seus principais eixos e também pela incorporação dos valores culturais tipicamente brasileiros que formam a nossa identidade nacional.
O Desejo de Revolução
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Revolução e Revoluções
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O Sentido Perdido da Revolução
As esquerdas brasileiras viveram nos últimos 35 anos experiências múltiplas. Desde uma relativa unidade contra a ditadura até a participação hegemônica, através do PT, em governos nacionais, passando pelos papeis de oposição e situação em governos estaduais e municipais.
Sem dúvida, os anos de 2003 a 2015 sob a presidência de Lula e Dilma, foram os mais significativos.
Por isso talvez valha a pena deitar um olhar um olhar sobre a hegemonia do PT na esquerda brasileira e a nossa derrota representada pelo impeachment de Dilma Rousseff, bem como o renascimento de uma direita com características profundamente reacionárias em nosso país.
Isso não aconteceu por acaso, nem por conta dos “acertos” do governo, como costumam dizer alguns membros do PT e da esquerda.
Arrisco-me nessas notas militantes a especular de forma absolutamente assimétrica, sem metodologia historiográfica ou acadêmica, usando as linhas distorcidas e grossas do expressionismo, a tentar explicar o que me parece ter sido o nosso maior erro: ter perdido o sentido da revolução.
A esquerda que enveredou pela luta armada contra a ditadura nos anos 70 não teve sucesso. Foi massacrada pelas forças militares e policiais. Solenemente ignorada pelo povo. Justificou, inclusive, uma onda repressiva que atingiu outros segmentos das forças democráticas.
Uma outra esquerda, com uma opção estratégica baseada na acumulação de força política, na pressão democrática, e na mobilização pacífica do povo, esta, sim, foi vitoriosa. A esquerda teoricamente vitoriosa, (PCB e aliados) entendia que a ditadura, perdendo terreno nas eleições de 1978 e 1982 e com o crescimento do PMDB seria, finalmente, derrotada politicamente e não derrubada pela força das armas ou de um golpe. E isso ocorreu, de fato. Não como imaginava o PCB, através de uma Constituinte, mas na campanha das Diretas Já e na eleição indireta de Tancredo Neves. Uma consequência da outra.
A distinção entre as visões táticas de “derrubada” e “derrota” da ditadura foi definida pelo sociólogo Luiz Werneck Vianna.
Entretanto, a hegemonia política da esquerda não ficou com as forças que primeiro propuseram a via democrática para derrotar a ditadura. O PCB e seus aliados não souberam, não tiveram força ou não quiseram disputar a hegemonia da esquerda. Talvez sonhassem com uma hegemonia mais ampla, das forças democráticas em geral. É bom que se diga que a via prussiana não era perseguida apenas por Carlos Marighella, pelo PCdoB e por Lamarca. Tinha adeptos inclusive em setores do PMDB. Embora sem ação direta, como os guerrilheiros, alguns setores buscavam laços com os militares nacionalistas provavelmente para um “golpe democrático” e nacionalista.
À medida em que a ditadura perdia terreno, novos partidos surgiam (PT), outros ressurgiam (PTB e PDT) e os partidos comunistas continuavam na ilegalidade formal.
Lula, por exemplo, apareceu para todo o Brasil, fora de São Paulo, na campanha das Diretas Já, que foi uma iniciativa da bancada parlamentar do PMDB na Câmara dos Deputados.
Mas, como para provar que a política não tem de bem-querer, nem prêmios de justiça, os ex-guerrilheiros que se juntaram aos operários e intelectuais ainda, àquela época, radicais, para formar o PT aproveitaram bem uma circunstância do nojo da classe média pela política praticada pelos políticos e partidos tradicionais.
O PT abriu caminho à cotoveladas moralistas, anti-aliancistas e até anti-políticas.
Crescia, porém, nos espaços conquistados pela política de conciliação, compromissos e alianças que tanto rejeitavam. Os quadros do antigo PCB ficaram como os escudeiros do bom senso, fazendo as alianças necessárias com o PMDB e os “300 picaretas do Congresso Nacional”. Enquanto o PT crescia. Perdeu três, quatro eleições. Sempre com candidatura própria. Sempre crescendo e surfando na onda da diferenciação entre um PT puro e a execrável política tradicional.
Até que em 2002, após oito anos de governo pretensamente social-democrata de Fernando Henrique Cardoso, os ex-radicais José Dirceu, Antônio Palocci e outros, com a Carta aos Brasileiros, adotaram a política de alianças que sempre execraram. Muito mais profunda, porque em função dos compromissos econômicos. E como num passe de mágica, o PT tornou-se o partido de massas, democrático e politicamente flexível que o PCB sempre sonhou ser.
O PT ganha a eleição presidencial e, no governo – imaginando que estava no poder – como Lula já reconheceu, faz as mesmas coisas que todos os partidos que por lá passaram fizeram.
Embora realizando avanços sociais nunca antes obtidos na história do Brasil, o governo liderado pelo PT levou adiante um programa social, mas não um projeto nacional. Um programa socialdemocrata de distribuição de renda e mobilidade social, como os governos dos titulares da socialdemocracia (do PSDB) não conseguiram realizar.
E os escudeiros do bom senso do Partidão, dividiram-se entre os que acompanharam o PT, aceitando por anos sua liderança e os que se distanciaram da esquerda, como o PPS de Roberto Freire que se alinhou às forças de centro e centro direita. Como dissidentes do PT, surgiram a REDE e o PSOL e outros menores e mais radicais como o PCO.
E entre os que acompanharam o PT, ocorreram algumas formações partidárias como o PSB, o PDT, o PV e outros. Nenhum desses, contudo, conseguiu agregar os elementos que fizeram a força do PT: uma liderança pessoal forte como Lula, um inédito grau de democracia interna, uma representação social enraizada nos sindicatos e entidades sociais, a presença de intelectuais altamente qualificados e um espantoso pragmatismo político de viés sindical.
Nada disso impediu, contudo, que as biografias de alguns dos ex-guerrilheiros e dos radicais, dos moralistas intolerantes, transformarem-se em folhas-corridas de corrupção, enriquecimento ilícito e lavagem de dinheiro. Alimentando com fatos o discurso e o ódio disseminado pela direita. Como pôde acontecer isso, é uma das indagações para as quais procuraremos algumas pistas. Acho que a primeira está na chegada ao governo numa democracia fraca e sem um projeto revolucionário ou radicalmente democrático.
Os governos do PT avançaram
Nos governos liderados pelo PT, avanços e mudanças foram feitas. Muitas e muito significativas. A mudança da política salarial foi a mais profunda. Lembro-me que nos anos 80 e 90, o hoje Senador Paulo Paim, eu e tantos outros deputados à época, tínhamos como objetivo salário mínimo equivalente a 100 dólares. No governo de Lula foi para mais de 300. E isso significou mais alimentos, mais eletrodomésticos, mais roupas e, principalmente, mais dignidade para o trabalhador brasileiro.
O Bolsa Família injetou dinheiro numa área da sociedade que era só miséria. O Luz para Todos iluminou muitos lares escuros de pobreza. Mais filhos de trabalhadores tiveram acesso aos estudos, com mais escolas técnicas e mais universidades. O Minha Casa Minha Vida proporcionou grandes lucros aos empresários, mas criou milhões de novos empregos, e tornou real para milhões de brasileiros o sonho da casa própria.
Os brasileiros mais pobres do começo do século XXI sabem o que mudou pra melhor. E para eles, mesmo se prenderem, matarem ou cassarem, Lula, com todos seus incontáveis pecados, será o maior presidente que o Brasil já teve.
Tudo isso foi feito na onda do crescimento econômico numa maré internacional muito favorável, onde se distribuía renda e cresciam os lucros das empresas e dos bancos. Quando o crescimento diminuiu e foi necessário reduzir um pouco a margem do lucro, todos que antes gabavam o PT, viraram-se contra. Os aliados pularam fora. Os amigos transformaram-se em delatores.
E apesar de tantos avanços a exclusão social permanecia e a violência em muitas áreas do Brasil cresceu e se tornou, junto com a desigualdade, num obstáculo ao desenvolvimento. A educação está muito longe dos novos patamares civilizatórios do mundo na era do conhecimento e da inovação. A saúde que tem um dos melhores sistemas do mundo – o SUS – ainda registra quadros de horror em muitas regiões, por falta de financiamento adequado.
Em meio ao retrocesso econômico verificado no governo Dilma, abre-se uma das caixas-pretas da corrupção, a das empreiteiras. A mais óbvia, a mais fácil, a mais “democrática” onde todos os grandes, médios e até alguns dos pequenos partidos se lambuzaram.
Permaneceram fechadas outras caixas-pretas, talvez até bem maiores, do setor financeiro, das telecomunicações, dos fármacos.
O Pragmatismo Sindical
Sem dúvida, um dos ingredientes do sucesso do PT não veio do pensamento dos seus intelectuais nem do verdadeiro ardor de sua militância. Veio, sim, do pragmatismo sindical que ao invés de levar em conta as implicações sociais mais estratégicas, os ganhos para o conjunto da sociedade, os avanços efetivos de cada ação política, o sindicato vê apenas o que pode apresentar como ganho à “categoria”, como vantagem conquistada na mesa de negociação.
E nessa linha pouco importa quais concessões estratégicas sejam feitas. Dou um exemplo simples, pequeno, mas revelador, vivido por mim: conseguimos introduzir na Constituição de 1988 a jornada de 6 horas para empresas que trabalhavam em turnos ininterruptos. Os operários trabalhariam menos, ganhando mais horas de vida e lazer. Porém, o mais importante era que as empresas abririam novas turmas para mais um turno de trabalho, gerando novos empregos. Só no Polo Petroquímico da Bahia, que à época tinha cerca de 20.000 trabalhadores, criar-se-iam mais 5.000 novos empregos. E era esse o significado mais social e estratégico da novidade constitucional.
A aprovação dessa Emenda deu-se em meio a uma grande batalha parlamentar em que as empresas, inclusive do Polo Petroquímico, diziam que fechariam as portas caso fosse aprovada a jornada de 6 horas. O que era mentira deslavada, pois as petroquímicas da época tinham grandes taxas de lucro, algo em 15 a 18%. Altíssimo para a indústria.
O que fez o Sindicato? Negociou com os empresários uma jornada de 7 horas. Uma hora a menos que a situação anterior e uma hora a mais do que fora conquistado na Constituição. Proporcionou aos operários que já estavam no Pólo a diminuição de uma hora de trabalho e ganhos salariais. Mas as empresas evitaram a criação de quatro mil novos empregos.
Para completar o exemplo: nas eleições de 1990 o autor da emenda que, foi buscar pareceres internacionais, negociava e fazia alianças para transformar a jornada de 6 horas no parágrafo XIV do artigo 7º da Constituição, não se reelegeu deputado. Já o presidente do sindicato, com uma campanha bem maior, foi eleito. Nada de errado, mas muito revelador da forma de pensar e agir do sindicalismo. Abre mão da transformação estratégica, em troca do resultado imediato.
Essa lógica de negociação sindical, ajustou-se muito bem à prática do toma-la-dá-cá da política tradicional e dos setores empresariais mais ligados ao aparelho de Estado. Se o governo precisava fazer maiorias parlamentares, providenciava-se recursos financeiros para ampliar a bancada governista nas eleições, e comprava-se o resto com favores, empregos, mesadas, cargos em direção de empresas.
Devo registrar, contudo, que à época fiz apenas pequenas reclamações, tímidos protestos. Mas não tive força e disposição, para denunciar a manobra. Talvez com receio que alguém pudesse imaginar que eu estava tentando capitalizar eleitoralmente a emenda, que embora assinada e capitaneada por mim teve a participação de muitos parlamentares, inclusive do PT.
Tudo certo? Tudo igual? Sim e não. Porque mesmo sabendo-se que o PT e a esquerda (PSB, PCdoB, PDT) não chegaram ao governo para fazer uma revolução socialista, a maioria das pessoas contava com mudanças mais profundas, econômicas, sociais e culturais. Principalmente, na forma de fazer a política.
O mensalão e a Operação Lava Jato
O resultado do processo do “mensalão” em que foram condenados alguns dirigentes do PT, e o início da Operação Lava-Jato põem a nu o caráter oportunista, e não revolucionário de parte da esquerda brasileira.
A partir de seu segundo ano, em 2015 a Lava Jato confirma também o clientelismo, o fisiologismo e a natureza corrupta de parte do centro e da direita (PMDB, PSDB, PP e outros) e expõe o componente de traição nacional dos corruptos que transferiram para o mercado financeiro do exterior o dinheiro roubado.
Mais do que propinas, verdadeiros capitais que ao invés de criarem empresas e empregos no Brasil migraram para a ciranda financeira internacional. Uma super-mais-valia extraída do trabalho de milhões de brasileiros que pagam, direta ou indiretamente, impostos no País.
Embora se tratando de operação jurídico-policial realizada numa sociedade de classes, com a mídia fortemente engajada, a Lava Jato foi até mais longe do que se esperava, envolvendo praticamente todos os grandes partidos e figuras expressivas do centro e da direita. Com a balança pendendo mais, como era de se esperar, para a esquerda.
Parece que não compreendemos, o PT e, todos nós, seus parceiros de esquerda, que uma força política nova não chega ao governo impunemente. O fato de Lula nunca ter sido comunista, não eximia o PT de ser o portador de uma esperança revolucionaria, transformadora. No entanto os dirigentes que mais poderiam contribuir para a formulação de projeto nacional transformador, envolveram-se de tal forma na manutenção do poder e na busca da estabilidade política para o Governo, que abdicaram dos objetivos maiores: transformar a política e a sociedade. E nessa abdicação deixaram-se inebriar pelas delícias do poder. Deslumbraram-se com as exéquias que lhes eram prestadas por grande parte da burguesia e seus representantes políticos.
Impossível evitar um triste sorriso ao ver na TV os executivos da Odebrecht, da OAS e outros, em depoimentos falsos ou verdadeiros, entregando, sem piedade os antigos amigos dos governos federal, estaduais e municipais. E em muitos casos fazendo das “intimidades” pessoais, em relações em que ultrapassavam em muito as condições das classes sociais a que pertenciam, fonte de legitimidade para suas delações.
E quando Lula diz que o PT fez o que sempre foi feito por outros partidos, pode-se constatar que não faltou aos seus governos apenas um projeto nacional revolucionário. Faltou também a necessária, para a esquerda, visão revolucionária. Faltou a percepção, de que vivemos em uma sociedade de classes. “Todos os outros” que fizeram a mesma coisa, impunemente, eram os partidos e os políticos da classe dominante.
Então, um grupo de políticos da esquerda, líderes sociais, sindicalistas poderiam fazer a mesma coisa? Doce ilusão. Poderiam fazer em 10 ou 12 anos o que os Sarney, ACM, Lobão, Maluf, levaram 40 a 50 anos para conseguir? O que os tecnocratas do governo de FHC, transformados em banqueiros, fizeram? Doce ilusão.
Nem mesmo com a ajuda do ridículo Departamento de Operações Estruturadas da Odebrecht, uma invenção tecnocrática do arrogante príncipe da empresa, isso seria possível.
O mais amargo é que os gestores públicos que se recusavam a participar desses esquemas, que se multiplicaram por todo Brasil, eram considerados incompetentes e amadores. Nem empresas, nem tecnocratas de outras instancias de governo, queriam aproximação.
Tornava-se difícil até realizar licitações, muitas delas dando desertas. “Com fulano à frente eu não participo”. Alguns desses gestores amadores, hoje estão mais pobres e isolados, embora conciliando o sono tranquilamente. Relativo consolo.
A corrupção e as eleições
A corrupção não impôs diferenças apenas na gestão pública, mas, também, nos processos eleitorais. Para a esquerda, se desde sempre os sindicatos ajudavam financeiramente os seus candidatos, desequilibrando levemente a balança em relação aos candidatos da esquerda não vinculados aos mesmos, havia ainda as militâncias partidárias voluntárias, as mobilizações por temas, os comitês sustentados pelos militantes. E não os comitês sustentando os “militantes”, como passou a ser. Antes os candidatos da esquerda lutavam contra o poder do dinheiro e das máquinas governamentais por parte da direita. E, mesmo assim, obtinham vitórias expressivas.
Do finalzinho do século XX e do começo do século XXI para cá, o panorama das campanhas eleitorais no campo da esquerda modificou-se completamente. Muitos dos candidatos de esquerda passaram a contar com tanto dinheiro quanto os mais abastados da direita. A militância passou a ser profissionalizada (paga) ou de funcionários públicos. A propaganda feita em escalas milionárias, com candidatos a deputado federal e estadual com 20, 30 carros de som, aviões, malas de dinheiro, empresas de publicidade e outros recursos. Militantes de bairros e áreas mais pobres transformados em cabos-eleitorais pagos a peso de ouro. E nesse ritmo até os eleitores que votavam por convicção, adesão a princípios, passaram a exigir dinheiro dos novos cabos eleitorais, o efeito cascata da corrupção.
Era o resultado do “fazer tudo o que outros fizeram”, jogar o jogo profissionalmente.
A classe média, digamos assim, limpa e digna da esquerda, foi substituída por alguns dirigentes políticos, sindicais e dirigente públicos, com muito dinheiro para aliciar militantes, cabos-eleitorais e eleitores das antigas bases da esquerda. Sim, porque nas bases eleitorais da direita pouco se mexeu. A preferência dos endinheirados da esquerda era pelos espaços e cabos eleitorais da própria esquerda, pelo simples fato que eram mais baratos. E conhecidos. Praticando os mesmos métodos da política tradicional e com a vantagem de poderem brandir um projeto de distribuição de renda, aumento de oferta de serviços sociais e contando com uma figura como Lula. Era como pescar de bomba em aquário.
Lula, além do PT, impulsionava também as candidaturas dos aliados à direita como o PMDB o PP e outros.
E porque você não fez a mesma coisa, perguntaria o eventual leitor? Afinal eram as regras do jogo. A novas regras.
No plano estritamente pessoal por incapacidade política ou psicológica. Por alguma razão que tentarei explicar, recusei-me a jogar esse jogo.
O sentido da revolução
Gosto, no entanto, de atribuir essa “neurose” de honestidade, ao sentido da revolução que de alguma forma, sempre pautei minha atividade política. A ideia de que estando onde estivesse, fazendo o que tivesse que fazer, individual ou coletivamente, o militante deve buscar o que de mais revolucionário e transformador possa ser realizado. E nessa direção, colocar um tijolo a mais que seja na construção de uma nova sociedade. Quando adolescente quis ser um “profissional do Partido”, recebendo de meu pai, o advogado comunista Dante Leonelli, a lição de que a revolução não era obra de revolucionários profissionais, mas do homem comum. Não me convenci completamente. E quando as circunstancias me levaram à vida política, ou melhor para uma carreira política tradicional, voltou-me a obsessão do revolucionário profissional. E é essa obsessão, talvez neurótica, que me faz acreditar que se pode assaltar um banco para financiar a revolução, mas não se pode tirar um tostão de escolas, hospitais ou criação de empregos, para financiar eleições individuais. Ou para enriquecimento pessoal.
Sei que este raciocínio tem muitos furos. Mas, afora essa questão moral, talvez, discutível, acho que a perda do sentido da revolução tem outras implicações mais objetivas em relação a esquerda. Principalmente no que diz respeito à esquerda em governos republicanos e democráticos. Implicações que envolvem os quadros do governo, os militantes e até as pessoas comuns, os trabalhadores, os pequenos empresários, os intelectuais, os artistas e especialmente a juventude, que quando não possuem um grande objetivo social e econômico tendem a se deixar envolver pelo egoísmo, pelo consumismo desenfreado, pela competição predatória, típicas do capitalismo.
São os valores socialistas e do trabalho que proporcionam substância revolucionária aos compromissos morais e éticos com a honestidade, a prevalência do público em relação ao privado, do coletivo em relação ao individual.
Lembro-me de relatos sobre estudantes chineses na Inglaterra na década de 70, que se recusavam a participar das deliciosas, e merecidas farras em momentos de folga, para se concentrarem nos estudos. Não porque fossem anormais ou tristes, mas porque estavam em missão revolucionária para levar para a China máximo de conhecimento. E porquê? Porque a China tinha e tem um projeto de Revolução. Uma construção coletiva – muito além da Longa Marcha ou da guerra – em que todos se sentiam proprietários, sócios de um projeto.
A China, inclusive comparou a corrupção com crimes de traição nacional e aplicou, muitas vezes a pena de morte.
A ausência do sentido da revolução produz efeitos negativos sobre os governos de esquerda, sobre a militância e sobre a população como um todo, essa ausência estimula ainda o pragmatismo nefasto e sem princípios, que tomou conta da atividade política. O pragmatismo que se revela em cada aspecto da realidade e do governo em que nos conformamos com o menos. Para que, por exemplo, uma verdadeira revolução educacional, que nos eleve à condição de player internacional num mundo onde predomina a economia do conhecimento, se já aumentamos as vagas das universidades? Para que um projeto econômico que contemple a modernização da indústria, os investimentos em ativos intangíveis ligados à criatividade, se já concedemos isenções fiscais à indústria automobilística? Para que mudar as regras do jogo político, se já compramos a maioria parlamentar e Lula continua campeão das pesquisas? Para que uma reforma tributária se ampliamos o Bolsa Família. A impressão é que a esquerda brasileira, notadamente o PT, passou a responder com o passado as demandas mais profundas do presente e do futuro. Não compreendeu que só a mudança contínua e crescente justificaria e sustentaria sua chegada ao governo. E que essas mudanças só poderiam se dar com a pré-existência de um projeto transformador da sociedade. Afinal, continua verdadeiro o axioma leninista segundo o qual não há revolução sem teoria revolucionária. Adaptando para os dias atuais não há transformação sem um projeto nacional.
Projeto Nacional transformador
A substituição de um projeto nacional revolucionário por programas fragmentados, embora de grande valia, não seriam, como não foram, capazes de transformar profundamente a sociedade brasileira. E foi isso o que levou a esquerda brasileira ao grande equívoco de imaginar que poderia mudar a sociedade usando os mesmos métodos das classes dominantes.
Não havendo um projeto nacional de caráter democrático e revolucionário, os avanços sociais setoriais – importantíssimos, volto a repetir – aparecem como dádivas dos governos liderados pelo PT e com a participação da esquerda (PSB, PCdoB, PDT). E o povo ficou muito grato ao PT e a Lula pelo salário mínimo, pelo Bolsa Família, pelo Minha Casa Minha Vida, pelas vagas nas escolas técnicas, pelo recurso do FIES. Gratidão que, sem dúvida, é um bom capital eleitoral.
Mas gratidão não é engajamento. Não é conquista. Não é realização de um projeto em que todo o povo se sinta protagonista.
Aliás, um projeto que não poderia ser de um governo, mas de uma representação social e política do povo: um partido, ou uma frente de partidos, num movimento. Um projeto de mudanças crescentes que incluísse as que já foram realizadas. Mas contemplasse também uma transformação profunda da sociedade com reformas progressivas e estruturais nas áreas tributária, da educação, do sistema financeiro, da comunicação, da estrutura agrária, das áreas urbanas, da pesquisa e desenvolvimento, da tecnologia e inovação. E porque não das leis trabalhistas e do sistema previdenciário que terão mesmo que ser reformados para se adaptar aos tempos modernos, a nova realidade? Obviamente seria melhor que essas reformas fossem uma iniciativa da esquerda, para evitar a barbárie capitalista vinda por exemplo do governo Temer.
A esquerda teria que propor a reforma das instituições políticas valorizando a democracia participativa direta, o controle social dos governos através da lei de transparência e outros mecanismos de acesso às contas públicas. Mas, principalmente, uma reforma radical do sistema eleitoral.
A delicada questão dos monopólios das telecomunicações precisaria ser enfrentada com a lógica-democrática e não como reação política aos “meios adversários”, quando esses se colocavam contra os interesses do governo.
Se um projeto nacional contemplando todas essas áreas existisse, formando um conjunto de reformas e traduzido em linguagem popular, de forma a ser compreendido pela população, cada avanço teria sido reconhecido, não como uma dádiva, como uma conquista de toda, ou de parte, da sociedade. E se constituiria numa catapulta para novos avanços. Até o limite máximo de avanços possíveis dentro do capitalismo e a perspectiva da mudança qualitativa, quando fosse momento histórico, para uma sociedade socialista.
O projeto nacional transformador é a substancia do sentido da revolução. Apropriado pelas pessoas comuns da sociedade, dirigentes políticos, líderes sociais comunitários e profissionais, pelos intelectuais e artistas, pela juventude, possibilitaria aos governos de esquerda, legitimidade e posição de força para os embates oriundos da luta de classes e para os entraves meramente corporativos do capital e do trabalho. Seria, também, um anteparo para deslumbramentos com o poder e para desvios éticos, inclusive a corrupção.
Esse o sentido da revolução, ao menos temporariamente, perdido.
Um projeto nacional transformador para o Brasil de hoje, pressupõe um conjunto de objetivos imediatos, de médio e longo prazos, pois se trata, evidentemente, de uma Revolução democrática e processual e não de uma insurreição de caráter violento e sanguinário.
Esses objetivos estariam numa lógica de transformação que os interligassem. E, é claro, com um objetivo histórico que daria sentido a todos os outros. Um sonho. Uma utopia. Na minha visão pessoal o objetivo histórico seria uma sociedade socialista, sustentável, moderna e democrática.
A NOVA REVOLUÇÃO
Há que se levar em conta na construção dessa teoria, as profundas mudanças que se operam em velocidade nunca antes verificadas na história. Surge um novo modo de produção, uma nova organização da força do trabalho que nos coloca diante da emergência de novos elementos de produção de valor. Observa-se o que diz Jeremy Rifkin, em seu livro “Terceira Revolução Industrial”: “as organizações sem fins lucrativos, o Terceiro Setor, que não são nem mercado nem governo, já representavam em 2005, de 5% do PIB de oito países pesquisados, EUA, Canadá, França, Japão, Austrália, República Checa, Bélgica e Nova Zelândia. Na Bélgica, por exemplo, 13,1% dos empregos estão nesse setor, no Reino Unido 11% e na França e EUA 9%”. Isso somente em relação ao trabalho.
Em relação à economia em geral, as mudanças do capitalismo são ainda mais significativas. A atividade industrial, por exemplo, carro-chefe do capitalismo moderno, geradora e consumidora de praticamente todo avanço tecnológico nos séculos 18, 19 e 20, responsável pela formação da classe operária, considerada a vanguarda dos trabalhadores e das antigas revoluções socialistas, teve a sua força de trabalho reduzida a menos um terço em pouco mais de 20 anos. Nos EUA tinham, nos anos 50 cerca de 30% da população trabalhando em fábricas. Em 2016 apenas 8%.
Uma moderna teoria da revolução brasileira teria que incorporar os novos paradigmas de uma economia que está deixando de ter na indústria a sua principal força motriz, para dar lugar à produção do conhecimento, da tecnologia e da inovação crescentes. E que tem na cultura uma referência fundamental. Até porque essa mudança do capitalismo implicou em situações inimagináveis para o mundo do trabalho, para a luta de classes e para a exploração do trabalho, em patamares muito mais complexos e sofisticados.
Que contingente social, por exemplo, faria o papel reservado por Marx e Lênin, à classe operária? Contaríamos com uma nova classe revolucionária? Esta seria a nova “classe criativa”, englobando profissionais que utilizam a criatividade como motor da sociedade moderna, como quer Richard Florida?
A sociedade socialista e democrática que perseguimos, terá, seguramente, características bem diversas dos socialismos que já existiam (URSS) e da que ainda existem (China, Cuba, Coreia do Sul). E muito mais diferentes ainda das que usam indevidamente a denominação de socialistas (Angola, Moçambique, Venezuela) sem se constituírem, sequer, em sociedades capitalistas desenvolvidas.
Se há alguma coisa a fazer, essa coisa é procurar aprender com os erros e acertos do chamado socialismo real da antiga URSS, da China e de Cuba. Mais com os erros, pois derrotas ensinam mais que vitorias.
Entendo que os conceitos de revolução hoje são indissociáveis de outros conceitos como inovação, economia criativa e empreendedorismo, todos eles já fazem parte dos esforços de renovação do socialismo na China e em Cuba por exemplo. Na China a economia criativa foi incluída nos XII e XIII Planos Quinquenais e tem como objetivo trocar o “Made in China” pelo “Design in China”. Em Cuba, embora não haja ainda um plano estratégico para a economia criativa, estão desenvolvendo esforços para estimular o empreendedorismo especialmente no centro histórico de Havana e existe uma legislação especial para o trabalho na área do turismo.
Uma retomada da ideia de revolução estará, a meu ver, profundamente vinculada ao muito amplo conceito de Economia Criativa, como a economia da era do conhecimento e ao poder da comunicação, por si só já revolucionado pela revolução tecnológica e digital.
E se acreditamos ainda na possibilidade, ainda que a longo prazo, de superarmos o capitalismo, teremos que construir as bases de um socialismo criativo.
Trabalho, Tecnologia e Capitalismo
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15 de maio de 2017
Domingos Leonelli
Presidente do Instituto Pensar
Ex-Deputado Federal