Sempre alertei a quem me interroga a respeito que não estou trazendo nada novo no debate em matéria de economia do desenvolvimento. Rangel já tinha lançado as bases conceituais em 1956 e 1959 ao propor um novo marco conceitual que a história estava exigindo dadas as novidades intrínsecas ao projeto Sputinik e a reconstrução europeia. A teoria e a prática do “projetamento” foram abandonadas com a transformação do capitalismo em “capitalismo financeirizado” e o fim da experiência soviética. A China atual é uma repetição gigantesca do que já ocorreu antes e que muitos economistas do desenvolvimento já estudaram. Mas a história, neste caso, não se repete de forma que a China apenas faça de forma melhor o que os outros já fizeram. O debate que propomos é conceitual, sim. Mas principalmente histórico e político.
Analisar somente os instrumentos que a China tem utilizado para alcançar seus objetivos não é difícil. Coordenação, planejamento, geração de demanda via gastos do governo, políticas industriais, mudanças institucionais etc. Nada disso é novo. A nós o novo se resume, inicialmente a dois pontos já estabelecidos em nossa agenda de pesquisa: 1) essa “Nova Economia” surge na mesma época histórica em que uma nova formação econômico-social se consolida, o “socialismo de mercado” e 2) O núcleo desta nova formação econômico-social, o modo de produção socialista, tem sido palco de novos aportes em matéria de plataformas tecnológicas, o que tem alçado a planificação a patamares superiores no país.
Os cientistas sociais em geral, e os economistas em particular, não trabalham com o conceito de formação econômico-social. Eis um limite metodológico sério, pois essa “nova economia”, sua escala, as inovações institucionais que deram margem ao seu surgimento e o impacto direto sobre a vida de 1,3 bilhão de pessoas são impossíveis de ocorrer em uma formação econômico-social de outro tipo ou em uma outra “variante de capitalismo”. O próprio regime de propriedade – que dá base a um regime político de novo tipo que opera na China – dominante nos países capitalistas impede que certos fenômenos anexos à “Nova Economia do Projetamento” ocorressem, a começar pela possibilidade de superação da incerteza keynesiana, algo que nenhum país capitalista o conseguiu e que o socialismo chinês tem dado mostrado ser possível.
A separação entre economia e política é fatal nesse tipo de análise. A grande produção e a finança sob controle do Estado muda completamente a face do sistema econômico: uma economia de prontidão é formada. A Alemanha, os EUA, a Coreia do Sul ou qualquer outro Estado Desenvolvimentista não tem capacidade de fazer, mesmo dentro de seus limites, o que a China está a fazer. A diferença é política. A resposta não está na economia, strictu sensu.
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O papel do projeto. Evidente que todo país capitalista “regulado” também opera na base de projetos. Mas a realidade muda quando as tarefas nacionais chinesas são bastante diferentes em relação a alguns países ocidentais. Novos desenvolvimentos institucionais, produtivos e financeiros fazem-se necessário quando ao menos duas questões devem ser respondidas: 1) catching-up tecnológico e 2) necessidade de geração de 13 milhões de empregos urbanos por ano. Uma economia com essa dupla necessidade opera com o aporte de outras ferramentas. Daí o projeto passar a ser elemento fundamental, central – apesar de operacional ao planejamento – em relação ao próprio planejamento.
A questão aí passa a ser o de planificar, em escala gigantesca, a incerteza keynesiana. Até onde se sabe nenhum grande país capitalista do mundo viu-se diante de uma tarefa desta envergadura. Logo, não necessitaram desenvolver novos instrumentos e ferramentas de governo. A teoria e a história são um elemento único. Não se separa um elemento do outro. Como nos lembra Marcio Henrique Monteiro de Castro, neste sentido, o projetamento é uma teoria e uma prática que vai se alimentando com as soluções a questões colocadas historicamente aos planejadores e projetistas chineses. Impossível seria que essa abordagem estivesse sendo gestada nos EUA ou no Brasil. A teoria só surge onde contradições candentes demandam novas soluções, novas sínteses. E a China é esse lugar.
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Daí vem outro elemento que destacamos: o projeto na China passa a ser um instrumento de governo à serviço da superação das imensas contradições acumuladas no país ao longo das últimas décadas. Dois milhões de homens e mulheres trabalham no dia a dia daquela realidade buscando soluções de catching-up e pleno emprego de forma simultânea. É evidente que a China está inaugurando uma dinâmica de nível superior em matéria de desenvolvimento. A China não somente aplica com maestria o que outras experiências já o fizeram. O “projetamento” pode ser vista tanto como continuidade quanto superação de todo equipamento científico empregado em outros casos desenvolvimentistas de sucesso. A novidade? O projeto não como uma operação contábil, mas como síntese da transformação da razão em instrumento de governo por um determinado bloco histórico disposto a demonstrar a superioridade do socialismo à superação dos grandes dramas que afligem a humanidade. A própria escala com que tudo ocorre na China permite que somente esta formação social seja passível de mostrar e demonstrar novas regularidades em matéria de desenvolvimento econômico.
O debate deve ir além do campo da economia do desenvolvimento. Meu parceiro de empreitada científica, Alexis Dantas, de forma simples e genial o que se trata de fato a “Nova Economia do Projetamento”: uma nova e superior forma de organização política e social. Rangel, no seu tecnicismo, definia o processo nucleado pelo projeto indutor de utilidade. Logo, a “utilidade” no sentido aristotélico do termo, substituiria o valor como o núcleo da sociedade que Rangel pretendia ser socialista. A China está apenas no início deste gigantesco processo histórico. Já se trata de uma economia baseada em grandes projetos voltados à construção de grandes bens públicos.
*Elias Jabbour, professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE) e em Relações Internacionais (PPGRI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)