Por Antonio Martins
I.
O processo de renovação do pensamento de esquerda, que cresce em várias partes do mundo, mas custa a chegar ao Brasil, está produzindo mais uma novidade potente. Chama-se Teoria Monetária Moderna. Relaciona-se com o conceito dos Comuns, a Renda Universal da Cidadania, o Emprego Digno Garantido, o Green New Deal. Está presente em programas que somam radicalidade pós-capitalista e capacidade de empolgar as maiorias – como o de Bernie Sanders, nos Estados Unidos. Abre uma nova avenida política, numa conjuntura em que o antigo centro se rompeu, as velhas fórmulas de estabilidade democrática dissolvem-se e uma ultradireita agressiva explora o vazio e mobiliza parcelas da sociedade com base no ressentimento e rancor.
A Teoria Monetária Moderna oferece, diante deste cenário, a perspectiva de propor vastas transformações sociais e formas de democracia mais avançadas que a liberal, em crise. Ela sustenta que os Estados e as sociedades não estão condenados à ditadura financeira, aos orçamentos apertados, à “austeridade” fiscal, ao desmonte dos serviços públicos. Ao contrário: podem lançar-se a projetos muito mais vastos do que se supunha até agora para redistribuição de riquezas, expansão das políticas sociais e das redes de infraestrutura, substituição das fontes de energia contaminantes e combate às tragédias climáticas.
Isso porque, segundo a Teoria Monetária Moderna, a moeda não é uma mercadoria escassa, mas uma construção social e uma relação política – um Comum. Pode, portanto, ser fabricada, o que produz profundas mudanças na repartição de riquezas e de renda, e multiplica a capacidade de orientar a produção e distribuição de bens e serviços. Aliás, isso já ocorre – porém, até o momento, apenas em benefício da oligarquia financeira, como se verá adiante…
A nova visão resolve problemas políticos e preenche lacunas teóricas de enorme relevância e longa data. No Brasil, a esquerda no governo curvou-se costumeiramente aos limites impostos pela ortodoxia monetária. O caso mais clássico, e caricatural, foi o de Dilma Roussef. Mal fechadas as urnas que lhe asseguraram a reeleição, em 2014, ela desfez-se de seu “coração valente”, adotou o programa de seu adversário, mergulhou o país em recessão e desemprego e divorciou-se de sua base social. Abriu, assim, caminho para o golpe que as elites planejavam desde 2002.
Mas mesmo os governos de Lula, apesar de suas conquistas inegáveis, jamais ousaram reformas estruturais. Em grande medida, encolheram-se por se julgarem sem meios financeiros para a tarefa. A tímida Reforma Agrária e os parcos recursos destinados ao financiamento da agricultura familiar não chegaram a arranhar a hegemonia do agronegócio no campo. Nas cidades, sequer se falou em Reforma Urbana, porque não havia recursos para construir redes de metrôs e trens, lançar programas de habitação além da pequenez do Minha Casa Minha Vida ou realizar a revolução urbanística nas periferias. Nas Comunicações, dois retratos do acanhamento foram o abandono do Plano Nacional de Banda Larga, antes mesmo de iniciado, e os orçamentos raquíticos da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) – sempre incapaz de ter presença nacional ou internacional comparável às da RT russa, da Telesur ou da TV iraniana, sem falar da BBC… Os exemplos multiplicam-se às dezenas.
Mas o deficit vem de antes e não se restringe ao Brasil. O cientista político e economista José Luís Fiori tem frisado que socialistas e comunistas tiveram enorme dificuldade de criar políticas econômicas e monetárias novas, desde o início do século XX, quando participara pela primeira vez de governos, nas condições da democracia liberal. Numa primeira fase, repetiram as opções dos partidos burgueses. Após a II Guerra, avançaram, mas mantiveram-se sob o consenso keynesiano, praticando um capitalismo reformado. E após a contrarrevolução neoliberal, claudicaram pateticamente, propondo-se executar eles próprios os retrocessos exigidos pelo capital financeirizado e hiperpredatório.
II.
A visão radicalmente nova proposta pela Teoria Monetária Moderna surgiu de um paradoxo. Por cerca de 30 anos – do inicio da era neoliberal até a grande crise financeira de 2008 –, as sociedades e governos do Ocidente viveram imobilizadas pela camisa de força da “disciplina fiscal” e da contenção estrita de despesas. Afirmava-se como verdade absoluta um dogma infantilizante: as finanças dos Estados eram como as das famílias: não se podia gastar mais do que se arrecadava – do contrário, “os mercados” aplicariam, aos faltosos, punições severas. Os dirigentes deviam fazer a “lição de casa” e ajustar suas despesas (em especial os gastos sociais) às receitas.
Mas quando as maiores instituições do mundo estiveram à beira do abismo, por sua própria irresponsabilidade e ganância, os Estados foram convocados a salvá-las – torrando o dinheiro que não tinham. Primeiro, vieram as operações de “resgate” dos bancos, cujo custo aproximou-se dos 30 trilhões de dólares. A partir de novembro de 2008, o fulcro da tormenta havia passado, mas as economias estavam na lona. Para reanimá-las, os bancos centrais dos EUA, União Europeia, Suíça e Japão inundaram a economia global com o chamado quantitative easing. Mais de 10 trilhões de dólares foram emitidos em favor dos credores de suas dívidas públicas – ou seja, do 0,1% mais rico das populações, sob o argumento falacioso de que a riqueza terminaria escorrendo para todos…
A recessão global de fato foi interrompida. A maior parte das economias voltou a crescer, ainda que a taxas rasteiras. Mas dois dos efeitos colaterais persistem até hoje. Primeiro, uma enorme inflação do preço dos imóveis, que alimentou a gentrificação em todo o mundo – já que os grandes especuladores precisavam aplicar em ativos reais o dinheiro novo que recebiam. Segundo, um processo de desnacionalização das economias da periferia – porque, no centro do sistema, as corporações e os bilionários tinham uma montanha inédita de dinheiro em mãos.
A partir de meados desta década, começaram a surgir, entre a esquerda antenada com as mutações do capitalismo, respostas políticas a este fenômeno. Em 2015, Jeremy Corbyn, que postulava a renovação do Partido Trabalhista britânico, começou a falar em quantitative easing for people. Ao fazê-lo, lançava uma pergunta incômoda. Se os bancos centrais podem emitir trilhões em favor da elite financeira, o que os impede de fazer o mesmo para garantir o sistema de saúde pública, para zerar as mensalidades que começavam a ser cobradas dos universitários ingleses ou para restaurar o brilho esmaecido da rede de ferrovias do Reino Unido? Seu questionamento provocou uma reviravolta política que se desdobra até hoje – e talvez esteja apenas começando.
III.
A Teoria Monetária Moderna não é propriamente nova. Suas raízes estão no início do século XX e em economistas como o alemão Georg Friedrich Knapp, autor de State Theory of Money. Escrevendo em tempos difíceis, numa época em que o padrão-ouro era visto como intocável, Knapp ousou escrever que “a moeda é uma criação do Direito”. Mas sua teoria permaneceu à margem até que emergisse, já na crise dos anos 1970, uma tendência oposta ao neoliberalismo, que à época acabou triunfando: o chamado neo-keynesianismo, ou pós-keynesianismo.
A economista britânica Ann Pettifor é uma de suas expoentes. Nascida na África do Sul, há 73 anos, construiu uma trajetória ligada à luta contra a aristocracia financeira. Foi, no final do século passado, uma das proponentes do Jubileu 2000, a campanha que propunha a anulação das dívidas dos países do Sul do planeta. A partir do início da década atual, seu trabalho passou por um aprofundamento teórico. São dessa época livros como The Production of Money – How to Break the Power of Banks [“A Produção do Dinheiro – Como quebrar o poder dos banqueiros”] e Just Money, [Algo entre “Dinheiro Justo” e “Apenas Dinheiro”].
As obras, que não é possível resenhar neste artigo, vão muito além de um combate moral aos donos do dinheiro. Elas mostram que a moeda passou por duas transformações radicais, ao longo do século XX. Primeiro, na época keynesiana, quebrou-se o padrão-ouro, que exigia um lastro em “metais nobres” para cada emissão monetária pelos Estados. Depois, nos tempos do neoliberalismo, este poder de emitir livremente foi docilmente privatizado, transferido pelos governos aos bancos comerciais. Chega-se a uma situação, mostra Ann, em que se romperam conceitos essenciais de nossa compreensão tradicional sobre a moeda. Os bancos já não são intermediários entre quem poupa e quem precisa de dinheiro. Eles próprios criam moeda do nada, por meio de meras operações contábeis, ao fazer cada novo empréstimo. Este fenômeno é uma das explicações essenciais para o enorme aumento da desigualdade, nas últimas três décadas.
Mas se é assim – ou seja, se a privatização do dinheiro foi uma opção política, por que novas decisões, de sentido oposto, não poderiam permitir que as sociedades e Estados recuperassem o poder de emitir moeda e, portanto, o de reger os fluxos de riqueza e de produção da economia?
IV.
A Teoria Monetária Moderna não é uma fantasia teórica. Na Ásia, onde o retrocesso neoliberal teve efeitos apenas residuais, esta dessacralização do dinheiro, destituído da condição de mercadoria escassa e reconhecido como relação política, vem de há muito. Outra economista, a norte-americana Ellen Brown, escreveu ainda no ano passado um artigo em que descreve o papel do Estado chinês, enquanto emissor de moeda, na sustentação de elevadíssimos índices de produção de riquezas e geração de ocupações, há três décadas.
No texto, Ellen mostra que boa parte da capacidade dos chineses em evitar as crises tão frequentes nas economias ocidentais decorre de sua atividade monetária e financeira. Se há setores em dificuldades, mas que desempenham papel importante, o Estado determina que os bancos os amparem. Se o problema migra para os bancos que deram este apoio, e também são relevantes, as autoridades monetárias socorrem estas instituições por meio de mecanismos contábeis que o Estado lhes conferiu.
As condições políticas da China são muito distintas das que vigoram nas chamadas democracias ocidentais. Mas também por aqui, as ideias sustentadas pela Teoria Monetária Moderna estão criando músculos. O caso mais concreto até agora é o Green New Deal. Encampado por Bernie Sanders, na disputa pela presidência dos Estados Unidos, foi proposto inicialmente, por Alejandria Ocasio-Cortez, a filha de imigrantes latinos eleita deputada pelo Bronx e conhecida por sua estreita ligação com novos movimentos sociais.
Na versão de Ocasio-Cortez e Bernie Sanders, o Green New Deal é um feixe de políticas públicas que, se adotado, mudará a face das sociedades. A emissões líquidas de gases do efeito-estufa, que elevam a temperatura do planeta, serão zeradas até 2025. Mas, em ruptura com a visão do ambientalismo que ainda informa a maior parte da população, isso não significará redução da atividade econômica. Ao contrário: implicará um imenso investimento público, necessário por exemplo para substituir as termelétricas por centrais energéticas solares e eólicas; para construir malhas de transporte ferroviário; para enfrentar a ditadura do automóvel nos centros urbanos; para replantar florestas nativas devastadas nos últimos séculos; etc etc etc.
A proposta do Green New Deal vem associada com mudanças radicais nas políticas sociais. Saúde Pública para todos (nunca existiu, nos Estados Unidos, algo como o NHS britânico ou mesmo o SUS). Universidades públicas sem mensalidades (são caríssimas). Cancelamento das dívidas dos estudantes (dezenas de milhões deixam o ensino superior pesadamente endividados). Um programa de Emprego Digno Garantido (o Estado empregará todos os que demandarem ocupação, direcionando-os para as atividades necessárias à reconversão da economia). Na versão de Alejandria (ainda não incorporada por Sanders) um Renda Básica da Cidadania, assegurada a todos independente de trabalho. Alejandria e Sanders propõem, é claro, uma Reforma Tributária. Segundo sua proposta, os muito ricos e as corporações pagarão muito mais impostos. Mas, dizem eles explicitamente, o grosso dos recursos para as grandes mudanças não virá daí. O Estado, ao emitir moeda e empregá-la para fins democráticos, adquirirá enorme poder de redistribuir riqueza e orientar a atividade econômica.
Serão quimeras? Ao sustentar estas propostas, Sanders tornou-se, segundo as últimas pesquisas, o candidato preferido dos eleitores do Partido Democrata. As mesmas sondagens dizem que venceria Donald Trump, nas eleições nacionais. Há algo se movendo na política. Diante do colapso do centro, surge espaço para a ultradireita – mas também para uma esquerda que ouse disser seu nome. Isso não se dá na Bolívia, Egito, Costa Rica, Nigéria ou Camboja, periferias do sistema. Está acontecendo nos Estados Unidos. E no Brasil?
V.
Num Brasil marcado há cinco séculos pelo abismo entre Casa Grande e Senzala, os anos do lulismo foram, assim como os de Getúlio Vargas, um raro momento de afirmação de direitos das maiorias. Entre seus feitos estão uma expansão inédita no ensino público e uma mudança nítida na composição social, cultural e étnica dos estudantes. Dezenas de milhões de famílias colocaram, pela primeira vez, um filho na universidade.
Porém foram, ao mesmo tempo, uma época de acomodamento das lutas sociais (e talvez aí esteja outra semelhança, pouco notada, com o getulismo…). A esquerda no poder desprezou as ruas. Preferiu governar de costas para elas: cooptando partidos e lideranças da “velha política”, aderindo a seus métodos corruptos. As mesmas elites que se beneficiaram destes arranjos os “denunciaram”, no processo que desembocou no golpe de 2016 e em Bolsonaro. É emblemático lembrar: os deputados que protagonizaram o show de horrores da sessão da Câmara que desencadeou o impeachment, em 17/4/2016, eram essencialmente os mesmos que compunham, até meses antes, a base parlamentar de Dilma Rousseff.
A Teoria Monetária Moderna abre caminho para uma trilha totalmente distinta, em dois aspectos essenciais. Primeiro, ela permite a uma nova esquerda dialogar com a sociedade em condições reais de enfrentar o protofascismo e o ultracapitalismo. Não se trata de “defender a democracia” em abstrato, ignorando que este regime segrega há cinco séculos as maiorias. Trata-se de propor programas que superem esta exclusão e criem condições para a construção de um novo pacto nacional.
Pense que, enquanto Bolsonaro faz discursos ocos contra o establishment, uma nova esquerda poderia defender ideias que dialogam intensamente com o combate à desigualdade, cada vez mais perceptível – em especial, é claro, entre as vítimas do abismo social. Imagine um projeto que inclua a reocupação dos centros das cidades, com habitações dignas e módicas para quem delas necessita. A garantia, nas imensas periferias brasileiras, de serviços de infraestrutura (ruas, praças, parques, cinemas, teatros, clubes, coleta de lixo, eletricidade e internet estáveis) equivalentes aos das zonas centrais. Um Plano de Mobilidade Urbana capaz de prever, em dez anos, que ninguém passará mais de 40 minutos deslocando-se de casa ao trabalho; e que as passagens serão gratuitas ou muito baratas. A recomposição da indústria brasileira. A mudança radical do modelo agrícola. Uma política de segurança pública cuja base seja, em cada quadra, cidadãos admirados por seus vizinhos e remunerados pelo Estado para mapear e dirimir conflitos pacificamente. A Escola Pública como a de excelência e a mais sensível a inovações pedagógicas. A restauração do SUS e de seu projeto original. Pontos de Cultura disseminados pelo território, agindo como articuladores da produção artística e dos desejos políticos.
Imagine, ao mesmo tempo, a democracia nova que um projeto assim ajuda a conceber. Se os Estados podem criar moeda e induzir distribuição de riquezas, por que não associar esta faculdade a versões ampliadas de projetos como os Orçamentos Participativos? Eles poderiam, inclusive, ajudar a cotejar os desejos políticos com os limites da natureza, num processo inovador de desalienação. A Teoria Monetária Moderna afirma que o dinheiro pode ser criado – mas não afirma que isso autoriza as sociedades a desconsiderar limites.
A vontade de construir uma linha nova de metrô, em dada cidade, pode não ser realizável no orçamento do ano seguinte – porque não haverá engenheiros e operários disponíveis, ou porque há, no trajeto, uma aldeia indígena, por exemplo. Mas esta demanda alimentará um processo pedagógico de reflexão e diálogo. É possível desviar o trajeto do metrô, ou oferecer uma alternativa desejável à comunidade indígena?
Um novo horizonte político está se abrindo, com inovações como a Teoria Monetária Moderna. Este horizonte propõe questões inteiramente novas. Permite, porém, deixar para trás o tempo da eterna reatividade, do labirinto sem saída, da mera defesa diante dos horrores do protofascismo e do ultracapitalismo.
Em muitas partes do mundo, a virada começou. E no Brasil?
* Editor do site Outras Palavras
Fonte: Outras Palavras